uma crônica. uma visita ou um centro fora do comum

Por Luiz Fernando Pinto

Depois de meses ausente das suas ruas, foi ao centro da cidade. Uma ida chula, desprezível, insossa, à ligeira. Tão rápida que se não estivesse aqui escrevendo sobre ela talvez caísse no esquecimento do tempo. Saltou do ônibus na Rua da Carioca. Mascarado, seguiu em linha reta pela Rua Uruguaiana. Em tempos pandêmicos, o vírus da observação ligado ao da vadiagem, presente na região e que acometeu João do Rio ao flanar por suas ruas, deu lugar a doença que já infectou mais de meio milhão de pessoas na cidade carioca. A covid-19 mudou novamente a sua relação com o centro. Caminhou sem olhar para os lados, desviando dos transeuntes com uma sensação de que não deveria estar ali. Na ida ao centro, se tornou um visitante indesejável, aquele que ressurgiu depois de anos e a gente conta os minutos para que ele vá embora. Lá vai o mala, dizíamos em família após a partida da persona non grata! Mas não está tão distante do centro assim, pelo contrário, renova os votos a cada ano, e depois, as relações são feitas de altos e baixos, aproximações e distanciamentos. Mas sabia que o centro merecia uma visita mais vultosa.

Foi ao centro com vontade de voltar, como das primeiras vezes. Quando criança acompanhava os pais nas consultas na Santa Casa da Misericórdia, na rua Santa Luzia, e nas idas à Lapa para fazer a sua inscrição no programa social da Fundação São Martinho. Ir ao centro era agoniante. Acordava antes do dia amanhecer, forrava o estômago com um gole de café e biscoito – não podia comer muito para não dar enjoo durante a viagem – e esperava o trem ramal Santa Cruz. A distância imaginada era maior do que os quase 40 km que separam Senador Camará da estação Central do Brasil. Apesar do desejo contínuo de retorno, foi ensinado que ir ao centro era uma obrigação e nunca um possível divertimento. Naquela época o melhor do centro eram os ambulantes do trem. 

foto de Luiz Fernando Pinto

Com o passar dos anos, a convivência foi adquirindo outras camadas, um novo centro se revelava a cada descoberta. O centro como local de trabalho, de disputa, de lazer, o centro de Lima Barreto, Machado de Assis, Carmen Miranda, João Cândido, Luís Martins, do carnaval, da Lapa, de Tia Ciata, do Largo da Prainha, da Igreja de São Jorge, do Cais do Valongo, do Morro da Providência, dos museus, do Saara, dos teatros, das rádios…. Achava que conhecia o centro, mas há muitos centros dentro do centro ou não há centro dentro do centro pois não existe centro?

Ao atravessar a Avenida Presidente Vargas lembrou do tempo que passou a frequentar o centro regularmente. O que na infância poderia ser angustiante, se transformou em sensação de prazer e até local de moradia, o que acabou não ocorrendo por pouco.

foto de Luiz Fernando Pinto

Antes da ida fatídica ao centro, duas experiências marcaram o seu entendimento sobre esse lugar repleto de contradições, mistérios, transformações, ancestralidade, múltiplas temporalidades, incompreensões e uma diversidade de sons, cheiros e personagens. A primeira, foi das vezes que tomou o trem aos fins de semana e seguiu rumo ao centro com o desejo de andar à toa, sem itinerário específico. Parafraseando Mário de Andrade, o centro não foi feito para olhos mudos, é necessário estar atento e curioso. Percorreu suas ruas sem critério, com um olhar de aprendiz construiu o seu próprio mapa da região. Nele continha uma seleta de árvores, casas, prédios velhos e novos que chamavam sua atenção, ruas preferidas, ruas proibidas, placas, cartazes, bancas, vitrines, gentes, esquinas, histórias que ouvia, lugares para ir ao banheiro, comida barata, comida saborosa, paredes, becos, músicas etc. Era tudo tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. Contrariava todo o imaginário de centro que herdou dos seus familiares. Até então achava que o centro não era das pessoas, mas era. Pois, como diz Luiz Antônio Simas, são elas que terreirizam o lugar, através de suas danças, brincadeiras, festas, cultura, disputa. O centro é um grande terreiro ou um falso mentiroso incapturável. Quiseram que fosse o outro, o francês, o catalão, mas é todos e ao mesmo tempo nenhum deles. O que também contribuiu para a construção de uma ideia estendida de centro foram os projetos realizados com a Peneira, onde se investigou, vivenciou e fabulou o seu cotidiano em ações como o Sarau do Escritório e o Fabulações do Território: Rua Joaquim Silva. Desde 2013, um ano de suspensão e de rua, utilizou como estratégia a operação a hibridação de linguagens artísticas e a construção de uma trama tecida por fios ligados à memória e à ficção com intuito de dar corpo a outras perspectivas ao centro.

Existe uma ideia de centro hegemônica? Há apenas um centro? Que imaginário de centro é o seu? Que projeto de centro querem que você pertença? Qual projeto de centro você cria? O que é centro? 

Foi ao centro com desejo de que não fosse essa a circunstância, mas tais condições passam e o centro (re)surge, como já vimos. De antemão, diz que volta e dessa vez não será para uma mera visita.

Luiz Fernando Pinto é artista, pesquisador, diretor-presidente da organização cultural Peneira, bacharel em teatro e mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio.

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