Sobre a rua Joaquim Silva, sobre a Lapa, sobre a cidade…

Sobre a rua Joaquim Silva, sobre a Lapa, sobre a cidade, sobre a cultura nas ruas, sobre imaginar e potencializar outras cidades possíveis, escrevi em 2020 no livro Fabulações do Território – rua Joaquim Silva o seguinte trecho:

“Nossa referência fundamental, homenageada no espetáculo e que também veio a se tornar uma grande parceira, Dona Marlene, é a personificação de como um território é construído cotidianamente pela articulação de pessoas. Sua forte influência e poder de representação dos desafios e afetos da rua revelam o que não está escrito na placa com o nome da rua, dos documentos oficiais e nem nos jornais e revistas sobre o ponto turístico. A liderança, presença e afeto desta mulher alcançam camadas que só são acessíveis a partir da relação entre pessoas. Através de suas ações, hoje temos memórias de uma rua que também é espaço para crianças brincarem de pique-pega, pula-pula, e para a realização de bingo com brindes como fraldas paras as recentes mães, a tão sonhada geladeira e até mesmo a cerveja do fim de semana. Enquanto fomos ali recebidos, vi num mesmo espaço a brincadeira informal e a ajuda entre vizinhos, ao mesmo tempo em que a vigilância do Estado passava de camburão abrindo caminho entre as bolhas de sabão espalhadas pelas crianças.”

Carrego esta imagem no corpo, de estar sentada ali em frente a casa de Dona Marlene e enquanto as crianças brincavam na rua, a polícia chegava com armas em punho. As violências implícitas e explícitas estavam ali enquanto vivenciávamos uma Lapa que Dona Marlene e sua vizinhança construíam cotidianamente.

Em 2021 iniciei minha pesquisa de mestrado sobre a experiência de fabular uma rua, a Joaquim Silva. Desde então, venho mergulhando nos vestígios do Fabulações do Território e de como, construímos outros imaginários e experiências na cidade através da cultura. A #escadariaselaron, terceiro ponto turístico mais visitado do Rio de Janeiro, muitas vezes é lida como espaço de consumo, senta-se ao centro do mosaico de ladrilhos e por meio de hashtags é possível se unir a outros nomes que de alguma forma também puderam se apoderar daquele espaço. Uma espécie de ballet se forma no palco colorido, uma fila, a pose e a foto ao centro. Às margens e em fluxo, moradores, transeuntes e curiosos circulam. Um dia desses, mais especificamente no dia 26 de maio deste ano, enquanto eu estava lá, mais uma vez corpografando a Joaquim Silva, um senhor, que aparentava estar em situação de rua sentou na lateral da escadaria, abriu uma cachaça e quando ía começar a desfrutar a possibilidade de estar ali, à toa, um outro homem se aproximou e falou “não pode sentar aqui não, aqui não é lugar de beber”. O senhor então se levantou e foi por livre e espontânea pressão para outro lugar. Poucos minutos depois, um turista sentou no mesmo lugar e logo veio um guia com duas garrafas de cervejas geladas e disse, isso aqui é só no Rio de Janeiro, referindo-se a informalidade, a descontração e ao atendimento “VIP” que estava oferecendo. O guia e o turista, não faziam ideia do que acontecera minutos antes no mesmo lugar em que estavam sentados, e puderam usufruir do espaço de lazer que o senhor anteriormente não pôde. Códigos e símbolos que filtram quem pode estar no Rio de Janeiro do cartão postal.

Ainda em 2021 escrevi alguns artigos para as disciplinas do mestrado e um também para o Intercom, nele falo sobre Sorte ou Revés, o espetáculo a partir das memórias da rua Joaquim Silva que fizemos em 2019. No artigo descrevo “a ação cênica na rua como “um constante colocar-se no perigo, no imprevisto e nos atravessamentos da cidade. Durante o percurso realizado pelos integrantes do projeto, no período em que o espetáculo ficou em cartaz, os riscos impostos foram inúmeros, desde a intervenção inesperada do público, até uma repentina incursão armada da polícia militar durante a execução do espetáculo, passando pela superação de limites físicos dos próprios corpos. A conquista do domínio da cena, apesar de todas as intempéries, deu-se ao longo do processo de elaboração do projeto, na relação com a rua e na contínua colaboração entre os participantes da peça que ao longo da criação do espetáculo aprenderam formas de estar na Joaquim Silva que não obedecem a coreografia do dispersar imposta pela polícia no Rio de Janeiro. No artigo, descrevo que dona Marlene foi fundamental para este aprendizado.

Neste julho de 2022, em processo de intensa escrita sobre as experiências de fabular a Joaquim Silva, e até mesmo ao ensaiar a escrita acadêmica, fico ecoando a notícia do assassinato de um homem nesta mesma rua, volto a estas e muitas outras imagens que carrego desta rua da Lapa e todas as suas complexidades.

Como Cientista Social por formação, pesquiso a comunicação na cidade, da cidade. A urgência e objetividade jornalística é algo que extrapola a minha escrita neste momento, mas acredito que é preciso falar sobre essas multiplicidades da Joaquim Silva, da Lapa, do Rio de Janeiro. Insisto em levantar, investigar e compartilhar outras memórias para poder olharmos para os cenários da segunda feira, dia 18 de julho de 2022, sob outras perspectivas.

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Link para download do artigo apresentado ao Intercom

 

 ✍🏼 Priscila Bittencourt é diretora de arte, projetos e comunicação da Peneira, mestranda do PPGCOM-Uerj,  integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Arte e Cidade.