Entre nÓs

O sol levanta e a cama já me estranha e me empurra até eu levantar.

Na pandemia era em casa todo dia, ainda bem que eu tinha quintal para me arejar.

Ao acordar eu bebo água e faço gelo. Eu mantenho um pote cheio de cubos no congelador.

Café com açúcar, pão com qually espetado na faca e aquecido na brasa do fogão até escorrer… até queimar. 

Em dias de folga, um baseado matinal.

Quando chove, preguiça, quarto, colagem, chocolate e lar.

Amigas, amigues e amigos para receber e visitar.

Pros dias tristes, FELICIDADE, de Marcelo Jeneci.

Pros dias felizes, FELICIDADE, de Marcelo Jeneci.

Dia de Jorge, 23 de abril, é dia de samba e feijão de véspera. Dia de encontro e de celebração.

 

Ouvindo Elza no disco de vinil 

Penso como minha vida está na lama 

Sou uma pequena lâmpada quebrada que perdeu as ideias 

Tento caminhar com meu sapato de corda, mas este me enforca 

É deste enforcamento que transbordam as palavras que escrevo neste caderno 

 

O barulho do ventilador lá de casa me tirava o sono.

Mas a vida infernal era pior do que qualquer pesadelo.

 

No quartinho, colchas coloridas com cheiro de mentira. Tenho tido altos e baixos. O sol levanta atrás das montanhas, uma cor laranja invade o céu e a minha cama já me estranha. Ela reclama. Tenho procrastinado todos meus afazeres. Ela grita comigo e me espanta, me empurrando até a beira da cama… Eu não quero, mas vou levantar. Para saber se sou eu mesma que habito dentro do meu corpo, aqui estou. De pé. Comigo ninguém pode. Mas, talvez, alguém                                                                                                                     tenha 

deixado

a

janela

aberta, 

noite 

estava

agradável,

uma

brisa

suave…

Será

que

aqui

estou?

DE PÉ?

EU?

Se alguém pelo menos tivesse empatia pela sua dura rotina. 

Mas Maria sozinha abraçava a solidão e o diploma na parede permanecia mudo.

E como não conseguiu ouvir nenhum conselho, decidiu Maria ser a voz do mundo.

 

Para gritar sem perder a voz é preciso ter técnica. Comece aquecendo a voz… Reverberação… Articulação…Apoio…Projeção… Após esse procedimento, busque o local onde você quer que sua voz chegue. Crie estratégias. Você quer que quem escute a sua voz? Fico feliz em saber que sua voz já não está cabendo em você e procura os poros para sair… Que ela anda saindo pelos dedos das mãos, pelo suor, pela boca. Sua e dos outros. Já posso sentir. 

Penso em quantas noites mal dormidas você precisou manter a sua voz contida enquanto ouvia, ressentida, apenas o ressoar do ventilador. Aquela turbina que incomoda e alivia. Enquanto você se manteve calada, sua voz por dentro gritava. Feito o zunido dos mosquitos no ouvido em uma noite de calor no subúrbio do Rio. Espero que a sua voz ecoe alto, forte, grossa… Inspirando você mesma e multidões.

 

Quatro anos sufocada com uma voz no peito

Calada, 

Cansada, 

Desesperada

Ela se solta de mim como um grito de alívio. 

 

Por que as pessoas se acostumaram a viver de forma medíocre, romantizando até o lixo em que vivemos?

Minha outlet é a feira de Areia Branca, e isso nunca deveria ser motivo de orgulho. 

 

É pensar que um dia já estive na senzala

Engoli a morte e a vida mil vezes ao dia 

Sorri com santo que na verdade era Exu

Cuspi na comida de sinhá

Matei o macho que tentava comer minha carne 

 

Em todo caso tome cuidado com ela, heim!?

Eu abri a porta da minha casa pra ela, quando ela não era ninguém. 

Se fazia de boa pessoa, mascarada de pessoa do bem.

Em pouco tempo pôs suas asas para fora e não era borboleta, era barata.

Rasteira, suja, traiçoeira. Cheia de veneno, trouxe doenças, qual uma rata.

Mas eu não estava só, essa foi a minha sorte e com isso ela não contava.

ELA

FOI 

POSTA

PARA

FORA

PELA

SUA

PRÓPRIA

BABA.

 

Levando na mala sonhos e livros, pronta para compartilhar o que aprendeu

-Tem coisa mais valiosa do que o conhecimento? Dizia ela. É coisa que o dinheiro não compra.

E assim como ambulante na feira, Maria seguia. Determinada a vender sua mercadoria.

 

Pela janela da ferrovia, eu vejo o lixo.

Lá tem de tudo. Sofá velho, tábuas, gente e crack.

Me pergunto: “Por que deixamos nossos lixos pelo caminho?”

 

Sob o sofá velho e poltronas quebradas, essa porta não te leva a nada

Porém, ao olha-la na folha, percebe-se algo abrindo-a 

É ela, a reflexão

 

Nessa lógica do patriarcado busque estar em rede com quem te respeita.

Seguindo a sua intuição.

A minha mãe dava um livro, um livro não, uma cartonera.

Talvez algo inspirado no Salmo 91.

Eu adoro citações. 

 

“Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico?” 

Já vi, já vi na minha cabeça, na minha imaginação 

Já vi capim ler um verso e me dizer: “Cresci aqui porque o sol bate pela manhã”

Já vi cachorro letrado com doutorado que escrevia no poste…

O mundo está perdido 

 

Cacarecos criam uma montanha de restos que foram parar no lugar onde ninguém quer estar. 

 

Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. 

Rejeite. 

 

Um saco serve de base para o despacho de muitos passados no chão.

Carregadores embolados, bandejas, fitas VHs, um vinil e livros mofados, molhados, mas alí.

Um pedaço de bico de mamadeira, cinco calças jeans, uma caixa de sapatos com colares.

Alguns porta-retratos, um esqueleto aos pedaços, quebrado, espalhado, de plástico azul. 

Escondida embaixo de uma manta, uma boneca. A única coisa limpa, nova, cuidada, mas alí. 

 

Presente é fugir e não pensar duas vezes. 

Fugir de um passado que não te quer mais.

 

Meu avô paterno deve pensar que eu sou um equívoco de sua geração.

Pois para um machista com convicção ser feminista é não ter razão.

Pra ele sou o erro. Pra mim, ele é o vilão.

 

Os corpos trazidos pela cegonha circulam na década de 30

 

Nas calçadas das ruas de Vila Isabel

 

O Rio de Janeiro é o país do carnaval.

Mas é também símbolo de bunda e quebra pau.

Aqui tem praia, violência e muito sol.

Mas também temos música e futebol.

Aqui tudo se encontra, aqui tudo se mistura.

Aqui tudo é o Ó

Entre nÓs existe um Rio que é o Ó.

 

 

Vocigrafia Entre nÓs – Escute!

 

Texto: Aline Vargas, Cida Franco e Luma Doné

Áudio: Aline Vargas, Cida Franco, Luma Doné e Tania Almeida

Ilustração: Aline Vargas

 

Obra criada por intermédio da oficina “Do sarau ao slam: a voz enquanto potencia criativa” ministrada por Luiz Fernando Pinto na Biblioteca Parque do Centro do Rio de Janeiro. A oficina faz parte do projeto Parque de Ideias.