À deriva

À deriva

Tinha semi planejado retomar os textos da Peneira com um artigo sobre o “Anti mapping” que fiz pro Verde [1] em 2022, processo que é fruto de encontros entre mulheres, um processo respiro depois de ter virado especialista em aprender a ficar submersa [2]. Ano passado assisti um espetáculo chamado Enquanto você voava eu criava raízes [3]. Através daqueles gestos, as luzes baixas, eu fui longe, pensei em raízes e sobre aquilo que não se vê na sombra, nas telas, sobre movimentar-se junto através do olhar, da troca que é gesto. Mas como estava dizendo, eu tinha um plano. De retomar as escritas para o blog da Peneira, escrevendo sobre imagens que dançam junto, sobre não me prender a expectativa de controle total da imagem projetada, de planejar o que extrapola, de “sair fora” da armadilha que é a gente só produzir audiovisual se tiver a rebimboca da parafuseta 10.000 ponto zero, que geralmente custa o que não podemos pagar. Mas no dia 26 de fevereiro, mudei o plano. Entendam: a deriva é método. Tem gente que acha que isso é fraqueza. Gente criativa, gente acadêmica, gente comum, tem gente que acha que nós temos que andar em linha reta e de preferência colocar um mastro bem visível no meio da cidade para mostrar, claro, que nós não se perdemos, convocando outros a um caminho certo a ser seguido. Encruzilhadas e curvas me interessam.

Quando era criança, o quintal da minha avó Luiza, lá na Estrada do Viegas, em Senador Camará, parecia uma grande floresta. Lembro dela me mostrando, isso aqui é café, isso aqui é algodão, essa é a erva cidreira, camomila, espinheira santa, a goiabeira, a aroeira, que ficava perto do muro e tinha um monte de pedras que sobraram de uma obra, nas quais eu subia e ficava comendo pimenta rosa. Minha vó falava que lá tinha uma cobra, mas eu gostava tanto da pimentinha que nem ligava pro bicho. Mas se ouvia um barulhinho diferente, saía correndo. Depois voltava. Tinham também as histórias debaixo do pé de mangueira. Esse ano foi a primeira vez que Chico, meu filho, acampou. Em uma noite quente de carnaval, ele super agitado com sua lanterninha, estava começando a aprontar na cozinha coletiva, levei ele pra debaixo de uma mangueira, falei pra observar como eram as folhas, o tronco, o tamanho, o cheiro e contei de quando era da idade dele e a bisa Luiza cortava manga no meio da tarde, contava histórias debaixo de uma mangueira como aquela. Ela cantava marchinhas de carnaval, e também cortava manga pra gente, minha irmã, ela e eu.

Desde que Chico nasceu em março de 2020, canto pra ele a marchinha da jardineira que aprendi com a minha vó e a loa de maracatu da senhora do Rosário. Lembro de, em março de 2020, no alto de um prédio em Vila Isabel, passar duas horas tentando amamentar e ninar ele, recém nascido, com as músicas enquanto olhava o fim de um mundo que se apresentava por intermédio da imagem de uma cidade completamente deserta. De lá conseguia ver o fluxo da ponte Rio x Niterói pelas cores das lanternas e faróis. Depois de alguns meses, a ponte voltou a ter cor à noite. Mas como ia dizendo, a mangueira do quintal da vó Luiza, ela ainda vive aqui na memória. Da última vez que estive na casa que minha vó morou, a árvore ainda estava lá. Dona Luiza nasceu em 1912, a relação dela entre casa, quintal, as ervas, os bichos, nos foi passada com a idade já avançada. Mas lembro dela forte plantando, podando, cuidando. Aquele quintal era uma expressão da minha avó. Esses dias andando por Copacabana, o Chico, como uma criança de quase 4 anos, estava caminhando super devagar, pedia uns colinhos, se distraía, parava do nada pelas ruas. Tem uma galera no bairro que conhece ele, e ao andar nas ruas escutamos uns “Francisco!!”! Ao circular com ele me sinto em meio a uma aula sobre urbanismo a partir de Jane Jacobs [4], com lições práticas da educação pelas ruas, da interação no espaço público, de uma forma que não havia experimentado antes. Tenho em mim que sou uma mulher da rua e atribuo uma postura política a isso… Ih, já tô entrando na pesquisa do doutorado. Calma ae. Mas enfim, em um determinado momento o Francisco me puxa, eu no meio do corre, e ele diz: “— mãe, olha pra cima, é uma mangueira, né? Mas essa é diferente.” Eu nunca tinha reparado que ali tinha uma mangueira. Naquele momento eu dei um abraço nele e agradeci, disse que apesar de ter passado por ali a vida inteira, nunca tinha visto a mangueira. Eu que estava atrasada, no corre, pensando no que tinha que fazer, fiquei ali feliz com a deriva do Chico. Seus olhos me trouxeram o inusitado para o cotidiano do bairro.

Na deriva tem cheiro, tem formas, outros ângulos, é perder-se para achar outros caminhos. Na deriva na vida, e na cidade, sinto como na brincadeira do quintal, pega uma folha aqui, mistura com outra ali, corre atrás da galinha, pega a pipa do garoto que caiu perto do muro – por quê naquela época eu não quis soltar a pipa? por que só os meninos soltavam pipa? -, mesmo na deriva jamais poderia ter a chance de ser pipa avoada. A pipa, o mastro, a placa, tudo isso também é corpo. Corporalidades indagadas na vida adulta. Lembro das aulas sobre arte e agência na graduação em Ciências Sociais. A rede de caça [5]. Eita, fui parar agora na imagem da mandioca em um ritual indígena em que presenciei o processo de feitura do Cauim [6], onde oferecia-se um refrigerante ao lado da bebida produzida a partir da mandioca. Gosto dessa imagem, nunca esqueci. Da vida, da cultura, daquilo que me dizia um monte de coisas ao mesmo tempo. Enquanto jovem na graduação em Ciências Sociais, entendi que queria buscar esse tudo ao mesmo tempo, através das imagens, da fabulação.

A deriva se faz com o corpo atento, corpo todo. Nessas derivas da vida, a rua, a cidade, se apresentaram em forma de dança, sons, cheiros e sensações. A Lapa que na adolescência eu vivenciava pela boêmia, na vida adulta, experimentei com os arrastões do maracatu e via através da vertigem do giro da saia. Foi em 2007 que eu morria de vergonha de dançar na rua. E foi no mesmo 2007, que eu queria dançar na rua pelo menos uma vez por mês. Aquilo não era exatamente uma linha reta, um caminho, mas ainda bem que entrei ali na fundição e a Aline Valentim disse:”— vem!” Mas eu também fui dar outras voltas. O cinema e o audiovisual me transformaram. Conhecer Agnès Varda, por exemplo, foi um acontecimento, aquela mulher que se colocava como uma catadora de imagens e gestos. Varda me emociona e inspira.

Falando em voltas, preciso retomar o caminho objetivo do texto. Mudei o plano pois, no dia 26 de fevereiro, tive uma notícia que me deu vontade de fazer essa deriva escrita. Em 2018 começamos, digo, a Peneira e seus colaboradores, o processo de formulação do Fabulações do Território na rua Joaquim Silva na Lapa. Um processo de construção de um espetáculo a partir das memórias da rua, com moradores e artistas convidados. Fui uma das pessoas que dirigiu o processo. Desde o início das ações, tinha essa preocupação em gerar arquivos, documentos, registros. Em 2019, formulei um projeto de mestrado para aprofundar minhas pesquisas a partir da experiência do processo do espetáculo chamado Sorte ou Revés, que realizamos na rua e com a rua – e foi o primeiro resultado do Fabulações do Território. Não passei. Como diz a música: “— Teeente outra vez”. E em 2020, em meio a um fim de mundos, mexe aqui, mexe ali e voltei com meu projeto. Passei!!!

Voltar à academia. Adivinha? Foi um daqueles momentos em que se pode olhar e dizer:”— caraca esse caminho faz todo sentido!” Com a orientação da minha querida orientadora Cíntia Sanmartin Fernandes, abracei a deriva como método. Mergulhei em textos que eu tinha vontade de abraçar os autores e dizer: “— caraca, obrigada!!!” Escrevi a dissertação, deriva purinha. “O Acontecimento Sorte ou Revés, na rua Joaquim Silva, Lapa: fabulações, imaginários e experiência artística na cidade”, defendida no dia 28 de fevereiro de 2023. No dia 26 de fevereiro de 2024, quase um ano depois, a pesquisa foi indicada pelo PPGCOM UERJ para o prêmio Compós de 2024. Tô feliz, sabe? O caminho se faz ao caminhar, e nesse campo acadêmico cheio de linhas retas, mastros, placas, divisões, essa dissertação que fala sobre a carne do mundo [7], comer e beber juntos, fazer cultura, de personagens do cotidiano, como em um balaio descrito por Haraway, carrega saberes em busca de fios e conectam a outros fios, tem nesse processo de indicação, um movimento. Sim, o movimento de ser lida, de ser comentada, de lerem sobre a Dona Marlene e o Adalto, da rua, dos encontros, que isso diz sobre a cidade que acontece. E o movimento me interessa.

Sou grata a parceria de Cíntia Sanmartin Fernandes que me pegou pela mão e disse vamos juntas, e acreditou nessas fabulações, desde que eu projetava filmes na praça pública em Vila Isabel. Nessas derivas da vida, voltas e voltas, catando aqui e ali, com o balaio de ideias, carrego fios para próximas ideias. Para quem olha a deriva de longe, ela pode parecer sem movimento, afinal, qual a importância de parar no meio da cidade e pensar sobre uma mangueira, alguns podem questionar. Eu me movimento entre algumas respostas possíveis, e enquanto movimento a mim, movimento a Peneira junto, nessa mania de miudezas e efemeridades que não cravam mastros, mas, movimentam pensamentos que geram pensamentos [8] em lampejos como essa escrita ou outras ações que abrem clarão.

[1]  Espetáculo dirigido por Lais Castro “Verde” que teve estreia em 2022

[2] Em referência ao poema de Alberto Pucheu

[3] Espetáculo dirigido por Artur Luanda Ribeiro e André Curti, “Enquanto você voava, eu criava raízes”

[4] Jane Jacobs foi urbanista, militante , entre tantos feitos autora do livro “Morte e Vida de grandes cidades”.

[5]Em referência ao texto “A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas” de Alfred Gell

[6] Bebida tradicional dos povos indígenas

[7] Em referência o pensamento de Maurice Merleau- Ponty

[8] Em referência ao pensamento de Donna Haraway

 

Priscila Bittencourt É Diretora presidente da Associação Cultural Peneira,  doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação UERJ. Integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Arte e Cidade ( CAC – UERJ) . Colaboradora do projeto “Novos olhares sobre o arquivo: visualidade, difusão e educação nos arquivos de mulheres do FGV CPDOC” . Graduada em Ciências Sociais pela UFRJ, com formação voltada para Antropologia Visual. Mãe do Chico