“Sorte ou Revés” ou a vida como ela é!

Por Hugo Cruz

É impossível começar a escrever este texto sem o localizar no tempo e espaço. Aliás, como aprendemos, sistematicamente, a fazer nas criações artísticas que envolvem os mais distintos territórios e protagonistas. Hoje, dia 27 Abril de 2020, escrevo desde o Porto. Passaram dois dias depois da celebração do 25 de Abril em Portugal. O dia da Liberdade, como ficou inscrito, assinala 46 anos de uma revolução, não violenta, feita por militares que se colocaram do lado do povo e o apoiaram na libertação de uma longa e opressiva ditadura. Essa revolução, feita com cravos nas pontas das espingardas, acabaria também com o absurdo e desumano domínio das colónias africanas. 

Curiosamente, festejamos este ano essa Liberdade (há palavras que não consigo escrever sem a inicial maiúscula) confinados em casa, à varanda cantando a música que fez despoletar a revolução¹ e que numa das suas passagens diz “o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade”. Esta poderia ser uma frase-ação repetida à exaustão em processos criativos coletivos que se pretendem assentes em lógicas relacionais comunitárias.

A pandemia COVID-19 é o que vivemos hoje, sem saber como será o amanhã e fazendo dos dias recriações frágeis e resistências necessárias. Aqui, como no Rio de Janeiro, com todas as diferenças das duas realidades sociais, culturais e políticas, este é um vírus que nos derruba as certezas e nos pode, ou não, (re)situar na relação connosco, com os outros, com o ambiente e, acima de tudo, com um sistema esgotado que não serve a esmagadora maioria. Vivemos uma espécie de parênteses, onde o que era já não é, mas o que vai ser é impossível de ser antecipado, o que nos obriga a centrar no agora e a uma libertação da tirania da previsibilidade. Esta é, provavelmente, a hora de viver o espaço e o tempo como eles realmente são. 

Com as distinções óbvias, existem aspetos no presente que se configuram numa espécie de “treino” que as práticas artísticas comunitárias já nos vinham a propor. Ou seja, o movimento de construir com o outro, o assumir das fragilidades, a cultura do confronto e discussão como construtores de outras perspetivas, a flexibilidade e o diálogo que exige uma criação coletiva, o processo constante de visibilizar e priorizar o essencial, a necessidade de resistência e desafio, a sustentabilidade, a relevância do erro para se voltar a experimentar, o perspetivar material e imaterial numa tensão construtiva, o espaço público como arena privilegiada de participação e criação, o respeito pelo tempo necessário dos processos, a análise e crítica das micro e a macro políticas omnipresentes nos ensaios, em cena e nas nossas rotinas, são coisas que, provavelmente, precisamos hoje e vamos ainda necessitar mais no futuro.

Alguns destes princípios são trazidos pela Peneira de forma fluída para os seus trabalhos. A maneira como se apresenta intitulando-se de “trama articulada no cotidiano da cidade, cuja a conexão entre pessoas e a representação de saberes do dia a dia perpassam as práticas e suas investigações artísticas, culturais e sociais”, revela a abertura ao risco e à multiplicação de outras realidades possíveis e urgentes. Num movimento orgânico e contínuo de questionamento, rigor, criatividade e organização coletiva e não negando conflitos e impasses inerentes, este grupo procura manter o seu trabalho com dignidade ética e estética, essencial aos nossos tempos. Assume, desde que os conheço, uma postura descentrada, de escuta e aprendizagem com as realidades, não procurando falar sobre as mesmas nas suas criações, mas antes a partir delas. Quando surgiu, depois de alguns felizes encontros, a possibilidade de estar próximo deste trabalho, como supervisor, penso ter entendido as demandas artísticas e políticas que o grupo não queria mais adiar. Pensando nas discussões comprometidas de como fazer e porquê, nas deambulações pelas ruas, nas reuniões skype (hoje tão banalizadas), nas leituras partilhadas, nas dúvidas e ruturas transversais, o coletivo manteve uma ação marcada pela construção de um encontro com os moradores da Rua Joaquim Silva, afinal um encontro de vizinhos do mesmo bairro com toda a sua diversidade. Sem tentações de “romantizar” estes processos, muito expostos a instrumentalizações, este trabalho concreto reuniu um conjunto de elementos chave a sublinhar. 

Desde logo, consistiu numa criação baseada na horizontalidade entre todos os elementos do grupo, profissionais ou não das artes, numa participação ativa em todas as fases do processo criativo. Desta forma, parecem ter sido evitadas abordagens participativas manipuladoras que excluem, por exemplo, os não profissionais de fazerem parte da tomada de decisão nos processos, perpetuando-se, assim, a manutenção da visão de quem já tem o poder dentro dos cânones estabelecidos. Tive oportunidade de perceber como a pesquisa histórica e antropológica envolveu todos, como a discussão e reflexão foi aprofundada e a escrita e direção, mesmo que assumida mais diretamente por alguns elementos, partilhada de forma persistente. “Sorte ou Revés” espelhou um exercício de relação com a Lapa não se limitando à representação, mas indo muito mais além poeticamente cruzando passado, presente e projetando futuro para os moradores do bairro e da cidade. O percurso da Peneira, quase sempre difícil, tem sido continuado, estruturado, pensado, perspetivando o conflito como uma potência. Este caminho foi reforçado neste projeto pela sua ligação ao contexto de vizinhança, da rua e proximidade intrínseca do ato de “criar” ao pulsar da vida. Tal, permitiu perspetivar uma criação artística em múltiplas dimensões muito para além dos circuitos culturais legitimados. Neste caso parece estarmos, à semelhança do que acontece noutras geografias na atualidade, perante “outras” e “novas” configurações de criação e participação. Falamos de espaços de ensaio e apresentação que constroem estéticas próprias e únicas atravessando o real e o imaginado, o convencional e o não convencional e modos de produção diversos. E, exatamente por isto devem ser reconhecidos enquanto tal, distanciando-se de categorizações desiguais e rígidas relativas ao acesso e legitimação da alta cultura e cultura popular. São espaços quotidianos que expressam o seu potencial artístico e os seus protagonistas que através da participação cultural expandem a vivência de cidadãos e o direito à cidade. 

Com as metáforas, o humor, o trabalho de corpo e de palavra, de coro, o cruzamento de diferentes linguagens artísticas, o pensamento crítico implícito e explícito, este trabalho salientou o potencial do “fazer junto” sem tentações homogeneizantes. Talvez pelo equilíbrio que este projeto revelou entre o “fazer participativo” e o “fazer institucional”, o “fazer artístico” e o “fazer político”, o prémio “Culturas Populares” do Ministério da Cidadania do Brasil, possa ter sido mais do que um agradecimento, mas antes um reconhecimento pelo trabalho que aponta no sentido de uma cidadania ativa onde se incluiu a participação cultural e o acesso aos modos de produção. 

Num momento em que nos fechamos, em que o medo reforça olhares e corpos em tensão, que lugar podem tomar as criações artísticas comunitárias que nos convocam a sonhar como algo inerente ao ofício de resistir enquanto humanos? Este é talvez o momento de responder à convocação de criar para e num outro mundo de forma comum e genuinamente participada, não fazendo “tábua rasa” das desigualdades e relações de poder instaladas. 

Estejamos à altura de rumar ao futuro como afirmava a personagem do prefeito em “Sorte ou Revés” –  “Por gentileza, é necessário que evacuem o espaço pois é preciso dar seguimento à obra, rumo ao futuro.” Mas desta vez, ao contrário do que ele defendia escondido numa maquilhagem inebriante, sem que este futuro seja assente em cimento, dinheiro, exploração, precariedade, sem que seja alicerçado na desumanidade. Estejamos do lado da construção da “sorte” sem negar a resistência ao “revés”.

 

Porto, 26 de Abril de 2020

 

Nota

¹ –  “Grândola, Vila Morena” música de Zeca Afonso que foi usada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) como segunda senha de sinalização da Revolução dos Cravos.

https://www.youtube.com/watch?v=gaLWqy4e7ls

 

Biografia

Desenvolve o seu trabalho no espaço da criação artística e participação cívica e política. Enquanto criador tem trabalhado em escolas, prisões, bairros sociais, centros comunitários, fábricas, casas do povo com principal enfoque nos espaços públicos e não convencionais.  Cofundador da PELE, Nómada e Núcleo do Teatro do Oprimido do Porto. Diretor artístico do MEXE_Encontro Internacional de Arte e Comunidade e Mira_Artes Performativas. Doutorando no CIIE–Universidade do Porto e CHAIA–Universidade de Évora. A sua atividade desenvolve-se entre Portugal, Brasil e Espanha nos campos referidos. Leciona com frequência em diversas instituições nacionais e internacionais. Coordenou os livros “Arte e Comunidade” (2015) e “Arte e Esperança” (2019) editados pela Fundação Calouste Gulbenkian.

(hugoalvescruz.com)

 

Bibliografia

 

Cruz, H. (Coord). Arte e Comunidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.

Cruz, H. (Coord). Arte e Esperança: percursos da iniciativa PARTIS 2014-2018. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2019. https://gulbenkian.pt/publication/arte-comunidade-percursos-da-iniciativa-partis/

Cruz, H., Bezelga, I. & Menezes, I. (2020). Para uma tipologia da participação nas práticas artísticas comunitárias: a experiência de três grupos teatrais no Brasil e em Portugal.  Revista Brasileira de Estudos da Presença, 10(2), 1-30. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-26602020000200208&tlng=pt

Kuppers, P. Community performance. an introduction. London: Routledge, 2007

Safatle, V. Amar uma ideia. In Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, editado por I. Jinkings, 45-55. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

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