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Por Priscila Bittencourt

Maio de 2020, 

Assim como muitos, me aproximo do mundo hoje abrindo janelas a todo tempo. Pelas janelas de casa vejo a cidade, que permanece movimentada, apesar de tudo. Pelas janelas abertas nos diferentes dispositivos percebo uma movimentação intensa de mentes que, no isolamento, produzem os saberes de um tempo; uma ruptura no séc XXI, como explicitou Boaventura Sousa Santos: “Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus”.

Por aqui, pós parida e em uma quarentena dupla com meu companheiro e meu filho, sinto como se estivesse atravessando um túnel, um portal dos tempos, em que consigo enxergar a convergência do futuro e do passado, um entre tempos, quase como um estado liminar (de acordo com Victor Turner em A floresta de símbolos). Como se os sujeitos isolados compartilhassem um não lugar, a caminho do que já começamos a chamar de mundo pós pandemia. Ainda que a Relatividade de Einstein não se aplique nessa abissal ruptura de tempos, entre eu, em dupla quarentena e aqueles que se recusam a acreditar na potência destrutiva da COVID-19 e não a realizam, percebo que fomos separados pela velocidade com que percorremos o atravessar dos últimos meses.

Enquanto uns mantêm, ou pelo menos tentam, a rotina pré COVID praticando esportes, indo com frequência na rua, ou aqueles que não tem outra possibilidade e seguem na labuta diária saindo para trabalhar, outros, assim como eu, mergulhados nos dias de cenários repetitivos, seguem produzindo/redesenhando o que se imagina de um novo mundo, um presente/futuro moldado a partir da presença do vírus que revela as fragilidades de nossas estruturas sociais. Uma projeção urgente de um futuro possível. Uma imensa produção no campo da cultura, acervos, museus, registros pessoais, lives, livros, artigos, jornadas alternativas, janelas e janelas se abrindo na expectativa de apreender a experiência trágica e não deixar que ela nos escape, desviando, assim, das armadilhas da memória e da nossa capacidade de amortecer os traumas do passado.

Simultaneamente me percebo visitando nosso passado nada glorioso, em que a democracia foi sufocada pelo autoritarismo. A atual necropolítica faz da possibilidade de vida dos pobres, sobretudo dos negros, uma possibilidade de lucro, numa mistura de negacionismo e fanatismo cego. Como ter um futuro de possibilidades com os tempos de chumbo, tão presentes e exaltados? Nascida nos anos oitenta, nem nos meus piores pesadelos – e olha que tenho sonhos criativos – pude imaginar essa soma de absurdos sombrios personificados naquele que disse “E daí?”.  Cheguei a acreditar que iríamos aprender com os erros do passado.  

 

O tempo e a memória incorporam-se numa só entidade; são como dois lados de uma medalha. É por demais óbvio que sem o Tempo, a memória também não pode existir. A memória, porém, é algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões através das quais nos afeta. […] Privado da memória, o homem torna-se prisioneiro de uma existência ilusória; ao ficar à margem do tempo, ele é incapaz de compreender os elos que o ligam ao mundo exterior – em outras palavras, vê-se condenado à loucura. (Esculpir o tempo. Tarkovski)

Em um túnel me vejo caminhando, com alguns metros de distância, com aqueles que se percebem no entre as bordas, segurando o fôlego para um futuro iminente. Logo ali, não sabemos quando, mas “nada será como antes”. 

Enquanto amamento, a cena da escadaria de Odessa, do filme Encouraçado Potemkin,  às vezes roda em looping nos meus pensamentos. Para além de toda ocitocina, sorrisos e olhares afetuosos, esses momentos são longos, algumas vezes por dia, noite, madrugada… E aí a mente também vai longe, perpassa lugares já visitados. No meu caso,  uma das memórias que tenho visitado é o clássico de Eisenstein. Penso na sequência em que as pessoas correm do perigo, o caos se instaura, nos planos das pessoas correndo mas que, por conta da repetição dos planos, dá a sensação de extensão do tempo,  trazendo a angústia de se sentir correndo numa esteira enquanto o perigo de aproxima. A repetição intercala com as botas e armas em outro ritmo, cortando, rompendo a fuga e sem condoimento acertam quem está no caminho. Por aqui os planos, nesses quase oitenta dias, podem parecer repetitivos, quando abro as diferentes janelas em busca “do mundo lá fora” e diariamente encontro notícias distópicas, ou quando aqui dentro vivemos dia após dia a não-rotina com um recém nascido, fazendo uso do espaço que temos disponível. 

Percorro agora os pequenos traços, sigo os pequenos gestos atenta à metamorfose quase imperceptível de todo dia. Traçamos juntos um futuro próximo, nossa pequena grande mudança. Nosso cortejo atravessa sonhos entre quatro paredes. Misturamos ritmos, cheiros e texturas, moldando o amanhã. Exercitamos agora movimentos menores, de contração. Ano bissexto, ímpar na nossa linha do tempo, que hoje segue nesse plano detalhe mesmo com as janelas abertas lembrando a imensidão que nos aguarda para os movimentos de expansão. São quase três meses aprendendo a navegar nesse rio que cruzou minhas correntezas, são três meses aprendendo com a vida, que cresce em meus braços, sobre a vida que merecemos ter daqui pra frente. Daqui pra frente. Nessa linha do tempo podemos decidir daqui o caminho dessa trama. 

Com a ciência de que a possibilidade de estar reclusa, minimamente segura e podendo almejar futuros é um privilégio nesse país de almas sebosas no poder, fico aqui todos os dias desejando e colaborando para que esses vermes e o vírus se saiam porque ninguém os aguenta mais – parafraseando Boca de Zero Nove e a vida, eles querendo ou não, permanece desabrochando e seguimos desenhado futuros possíveis, com a certeza de que é preciso reconhecer os traumas do passado que ainda ameaçam e comprometem vidas no presente. Cuidemo-nos! 

Priscila Bittencourt é cientista social, montadora e diretora de arte, projeto e comunicação da Peneira.