Isolamento duplo

Por Luiz Fernando Pinto

Penso que a palavra pássaro carrega até hoje

nela o menino que ia de tarde pra

debaixo das árvores a ouvir os pássaros. Manoel de Barros

Nosso isolamento, mesmo que ainda não motivado pela pandemia, começou no dia 11 de março, data em que a Priscila e o Francisco tiveram alta na Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda, que fica localizada no centro do Rio de Janeiro. Um banner, posicionado de maneira pouco visível na saída do hospital, ao lado de uma pilastra, próximo aos elevadores, informava sobre os sintomas da Covid-19. Durante nossa estadia, com duração de intensos sete dias, não ouvimos nenhuma informação sobre o Coronavírus. Uma vez ou outra olhávamos alguns jornais na internet para sabermos em que pé as coisas estavam ao redor do mundo, sobretudo em Wuhan, a cidade chinesa onde o vírus começou. Mas nossa preocupação era outra, o Chico já estava com 41 semanas e nada da bolsa amniótica romper. Ficamos numa enfermaria aguardando vaga para indução, modo como chamam o processo de parto induzido que consiste na administração de hormônios, como o misoprostol. Durante o tempo em que aguardávamos, os leitos disponíveis eram ocupados pelas mães que já tinham parido. Era uma sensação estranha, pois enquanto nós estávamos com medo que algo de ruim pudesse acontecer, havia várias mães plenas com seus bebês ao lado. No horário dos visitantes essa sensação triplicou. O Enzo, um dos bebês que nasceu numa madrugada, recebeu mais de trinta visitas em apenas um dia, ganhou presentes e posou para dezenas de fotografias. A cena se repetiu nos dias seguintes, parecia festa – tinha até decoração para ambientar as fotos. No fim, apesar de alguns traumas, voltamos todos pra casa a salvo.

Nós evitamos o máximo receber visitas e sair de casa. Além dos primeiros meses serem bem sensíveis para o bebê e para a mãe, o Ministério da Saúde havia confirmado, no dia 26 de fevereiro, o primeiro caso positivo de Coronavírus no Brasil e no dia em que deixamos o hospital eram 52 casos confirmados no país. Mas, dois dias depois, tivemos que ir numa clínica em Nova Iguaçu. O Francisco necessitava realizar a frenotomia lingual, que é a liberação do freio da língua quando sua inserção está muito curta, a popularmente conhecida língua presa. O procedimento cirúrgico é simples, mas caso não seja realizado o quanto antes, pode causar sérios problemas com relação a amamentação e trazer distúrbios na fala e deglutição. Como não temos carro e Nova Iguaçu fica a 40 km da nossa casa, pedimos ao Leonel para nos levar, ele é motorista particular. A Priscila e eu trabalhamos na área da cultura, vira e mexe contratamos o Leonel para nossas produções, o preço é justo e ele é confiável. Naquele 13 de março o país contabilizou 60 casos de Coronavírus confirmados. Saímos de casa com um frasco de álcool gel, produto que estava ficando escasso nas farmácias e mercados da cidade. No final do dia o Ministério da Saúde regulamentou os critérios para início do isolamento e quarentena. 

Passamos a maior parte do dia em casa, dentro do escritório. Nós seguimos tocando, com nossos parceiros, a gestão da Peneira. Há muito trabalho nos bastidores, escrevendo projetos, pesquisando e resolvendo as partes burocráticas, que não são poucas. Para que nosso tempo seja produtivo e saudável, Priscila e eu criamos uma rotina bem estabelecida. Fazemos questão de sentar à mesa na hora das refeições, cuidar das plantas e da limpeza da casa, além de separar um tempo para os nossos momentos de lazer. Com a vinda do Francisco, tudo isso foi deixado de lado. Cada dia é um novo desafio. Vinha pensando em escrever este relato há dias, mas só hoje,  20 de abril, iniciei enquanto a Priscila dá de mamar. Porém não sei se vou conseguir finalizar agora, depois que ela terminar terei que colocar o Chico para arrotar. 

O número de casos diagnosticados no Brasil até hoje são de 40.814 e o de óbitos somam-se 2.588, frequentemente parte da população pede a saída do presidente que deu alguns pronunciamentos na TV dizendo que o Coronavírus não passava de uma “gripezinha”. No dia 16 de abril ele exonerou o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Quem assumiu o ministério foi o médico e empresário Nelson Teich. 

Volto para esse texto no dia 26 de abril. Agora há pouco as secretarias estaduais de saúde registraram mais casos, já são 4.286 pessoas mortas por causa da Covid-19 no Brasil e 63.100 casos. 

Moramos em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, num apartamento que tem uma vista que particularmente acho incrível. Daqui avistamos o Morro da Mangueira, a ponte Rio-Niterói, o relógio da Central do Brasil, o Morro do Salgueiro, o Maracanã, dentre outros lugares da cidade. Uma de nossas janelas dá para uma mata que ladeia o Morro dos Macacos. Nela há um pé de siriguela, nessa época do ano os cachos ficam alaranjados, o que faz com que a árvore se destaque perante as outras. Alguns meses atrás um casal de gaviões começou a construção de um ninho bem no topo da árvore. Quando o Francisco chora por causa das cólicas, levo ele até a janela para olharmos os gaviões. Às vezes o choro cessa. As janelas tem sido o nosso maior contato com o mundo lá fora. Passamos um bom tempo contemplando a movimentação das outras pessoas nas suas casas e apartamentos, e também o voo dos pássaros. Além dos gaviões, há bastante maracanãs, pombos e outras espécies. Elas parecem felizes lá fora. Do mesmo modo, o carro do ovo e do camarão de Cabo Frio chamam a nossa atenção. Antes da pandemia o carro anunciava a cartela de ovos por R$ 10,00, atualmente custa R$ 16,00.

Nossa vida não é mais a mesma. Enquanto Priscila alimenta o Chico eu alimento a Priscila. Dividimos um único prato, cuidadosamente levo o garfo até a sua boca. Sempre cai um arroz na cabeça do Francisco. Agora é assim, nossas refeições são rápidas, às vezes comemos no sofá, outras na cama ou nem comemos, pois preferimos dormir do que cozinhar. Com a pandemia, nossos familiares só podem nos ajudar a distância. Eles só conhecem o Francisco por chamada de vídeo. Com relação ao nosso trabalho, ele é incerto e preocupante. A área da cultura está sendo afetada cruelmente durante esse período de pandemia, o que já era difícil está ainda mais complicado. O cancelamento de projetos e a ineficiência do Estado perante o setor colocam em risco a sobrevivência de muitos agentes culturais.

Entre a privação do sono, trocar fraldas, ninar e dar de mamar, há um universo que eu nunca tinha imaginado. São tantas informações e desafios, e nem sempre sabemos o que fazer. O cansaço é enorme! O Francisco tem sentido dificuldades para mamar mesmo após a cirurgia. Com isso, a Priscila desenvolveu mastite por duas vezes e foi preciso levar o Chico semanalmente no Instituto Fernandes Figueira para que ele pudesse acertar a pegada na mama. O Leonel levou a gente nas últimas consultas. Além do álcool gel, todos nós utilizamos máscaras de proteção. A Priscila atentou para que não tocássemos em nada, na rua algumas pessoas vivem como se nada estivesse acontecendo. Só saímos de casa para ir ao médico ou mercado, todas as vezes tomamos os cuidados possíveis, eu até raspei a cabeça e removi a barba para reduzir o risco de infecção. Os números de óbitos sobem de forma exorbitante, enquanto escrevo este parágrafo os jornais anunciam 645 mortes somente no estado do Rio de Janeiro.

Hoje, 29 de abril, o Francisco completa cinquenta dias de vida, recebeu alta no Instituto Fernandes Figueira e está mamando melhor. São 5.466 o número de mortes pelo Coronavírus no Brasil. Continuamos em isolamento. Conseguimos terminar a terceira temporada de Ozark no Netflix, vimos a live da Alcione, o show completo do Zeca Pagodinho e Maria Bethânia e trechos de espetáculos do Cirque du Soleil. Fizemos pão caseiro, li o artigo Aprendendo com o Vírus do Paul B. Preciado, sigo acompanhando as aulas da Pós Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e conseguimos, por uma noite, jantar juntos à mesa. Priscila me contou que viu o filhote dos gaviões dando os seus primeiros voos num fim de tarde. O pé de siriguela está ainda mais bonito. Parte dos vizinhos continua batendo panela nas janelas. Toda tarde um cara grita “mito” em alusão ao presidente. Em resposta algumas pessoas clamam por “fora Bolsonaro”.  

Seguimos olhando o mundo da janela com a incerteza do amanhã e torcendo para que tudo isso passe o mais breve. 

Vila Isabel, 29 de abril de 2020.