Carta aberta ao novo secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro e a sua futura equipe

Por Alex Teixeira

Caríssimo Marcus Vinícius Faustini,

Caríssimos integrantes da futura equipe da SMC,

A Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (SMC) foi criada em 1986, o mesmo ano em que cheguei nesse mundo, no Hospital Maternidade Alexander Fleming, na Zona Norte desta cidade, que outrora foi a capital da República, e em algum momento chegou a ser considerada a capital cultural do Brasil.

Nasci um ano e pouco após a redemocratização do país, e um ano e pouco antes da promulgação da Constituição de 1988, e consequentemente da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Minha mãe fez pré-natal e pariu com toda a assistência gratuita assegurada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que era a política pública de saúde em vigor antes do SUS. Tirando alguns períodos em que tivemos plano de saúde lá em casa, muitas das nossas questões médicas foram resolvidas através do SUS, o que inclui cirurgias, vacinação, e até aquelas vacinas extras que a gente toma quando vai viajar.

Assim como o Sistema Único de Saúde, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de alguma forma sempre esteve presente na minha vida, mesmo que de maneira implícita. Morando em Nilópolis, cidade fronteiriça com o último bairro da Zona Norte do Rio, era comum aos finais de semana meus pais, minha irmã e eu sairmos para dar uma volta em museus, centros culturais, ou para vermos outras camadas de cidade. Isso desde muito cedo mesmo. Lembro que nos anos 1990 as facções e as polícias estavam em pé de guerra, e aquelas tradicionais culturas de subúrbio, da cadeira de praia no portão, das festas das igrejas católicas, dos blocos de bairro, tudo isso estava de alguma forma desaparecendo. Um exemplo é que até a retomada forte do carnaval de rua do Centro, já nos anos 2000, eu nunca tinha passado a folia no Rio, e sempre ouvia aquela máxima: não existe mais carnaval no Rio, tudo é muito perigoso e violento. Depois descobri que não era bem assim, afinal, as turmas de bate-bola sempre estiveram por aí, assim como algumas bandas e blocos. Ah, nos anos 1990 a gente também ia muito pra shopping, e fazíamos umas coisas ao ar livre, tipo andar de patins ou bike na Vila Militar, em Deodoro, no Corredor Esportivo, perto da casa de uns parentes, na Ilha do Governador, no calçadão de Copacabana, ou na orla da Barra e Recreio. Sim, meus pais gostam do rolé, e era nesses rolés que minha irmã e eu, ainda muito jovens, descobríamos outros mundos, e trombávamos com a Secretaria de Cultura, fosse através de um show, de uma exposição, de uma peça de teatro, ou de uma ação artística realizada geralmente em regiões mais abastadas da capital. Nos anos que se sucederam me tornei trabalhador da cultura, e passei a desenvolver outras relações com a SMC, para além de espectador, como por exemplo: utilizando seus equipamentos enquanto artista, propondo projetos como realizador, disputando seus editais, e discutindo suas funções a partir do lugar de membro da sociedade civil.

Sei que essa questão da circulação – pra quem assim como eu cresceu na periferia –, infelizmente, não é tão comum como deveria. O direito à cidade, nessa metrópole tão desigual, é negado à maioria da nossa gente, e justamente por isso, no meu entendimento, a SMC deveria ter um peso que nem o do SUS, incluindo um orçamento territorializado. O peso da responsabilidade de fazer com que a população tenha seus direitos assegurados está nas mãos da nova gestão, justamente nesse momento de terra arrasada, e cabe ao secretário Marcus Faustini e a sua equipe assegurarem que o morador seja espectador, mas se ele quiser, também seja protagonista e inventor. Está nas mãos dessa equipe, ao longo dos próximos quatros anos, fazer aquelas reformas tão necessárias e urgentes, tais como:

Pautar o futuro e valorizar o passado através das memórias dos cidadãos; valorizar e incentivar a identidade e a herança cultural das populações negras através de políticas públicas culturais; criar juntamente com o chefe do executivo a tão aguardada lei do fomento; garantir a regularidade de editais para as diferentes linguagens artísticas; criar editais para a manutenção e pesquisa de grupos e coletivos; criar editais para Pontos e Pontões de Cultura; batalhar pelo aumento do orçamento da pasta para 2%; aprovar o Plano Municipal de Cultura e concretizar o Sistema Municipal de Cultura; aproximar a população dos equipamentos; respeitar e valorizar a diversidade e a liberdade de expressão; desburocratizar e conectar os órgãos (municipais e estaduais) para a ocupação dos espaços públicos; converter algumas praças em equipamentos culturais, com uma infraestrutura básica; transformar o projeto das Lonas Culturais em centros culturais nos moldes dos CEUs; reformar os teatros e demais equipamentos da rede; reformar as antigas salas de cinema de rua do subúrbio e integrar as mesmas a Riofilme; garantir que a Riofilme seja de fato uma empresa que fomenta a produção audiovisual da cidade; valorizar as expressões culturais dos territórios; fortalecer o patrimônio material e imaterial como experiência de pertencimento; aprimorar a Lei do ISS e assegurar um aporte maior em territórios vulneráveis; afiançar a aplicação territorializada do orçamento da pasta; realizar ações integradas da SMC com as demais secretarias de cultura da Região Metropolitana.

Cultura gera segurança, desenvolvimento, renda, e possibilidades reais de transformação social. Mas pra isso acontecer a vera, é necessário que tenhamos programas de longo prazo previstos em lei, e não somente medidas de governo.

Desejo demais que essa equipe tenha uma boa escuta, fortaleça a participação cidadã, a transparência, inove e agilize a máquina, faça investimentos de maneira democrática, e construa pontes pra gente crescer enquanto sociedade.

E que as tradições e as invenções sejam verdadeiramente valorizadas na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Evoé e muita sorte!

Cordialmente,

Alex Teixeira

Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2020.

Alex Teixeira é artista multidisciplinar, mestrando em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (bolsista CAPES) e bacharel em Comunicação Social. Co-fundador da Peneira, desenvolve seus trabalhos em espaços não convencionais, utilizando-se do conceito de artes híbridas.