Desvio com um olhar do presente

 Por Luiz Fernando Pinto

Estava escrevendo um artigo sobre literatura e infância para uma das disciplinas do mestrado até que cismei em dar um Google no Conde de Agrolongo, patrono de uma escola municipal na Penha, localizada próximo ao saudoso parque Shanghai e a igreja da Penha. Sabia que o desvio intencional poderia rumar para um buraco infinito, mas resolvi embarcar nesse trem.

Descobri que bem antes de ser Conde, o português José Francisco Correia, nos idos dos seus 10 anos de idade, recém chegado ao Brasil, foi trabalhar numa fábrica de cigarros em Niterói atuando como faxineiro e segurança. Curioso, passou a entender dos paranauês da feitura do fumo e aos 18 anos montou o seu próprio negócio, a Fábrica de Fumos Veado, que tempos depois foi absorvida pela concorrente Companhia Souza Cruz. Numa de suas jogadas de marketing, a Cia da Cigarros Veado promoveu no início do século XX um concurso para eleger o mais popular jogador de futebol brasileiro. Sem o advento da urna eletrônica, assim como lá nos states no tempo presente, a votação era feita por cédulas e essas, eram um maço vazio de qualquer cigarro da marca. Os eleitores registravam seus votos em urnas localizadas em frente ao edifício A Noite, na Praça Mauá, e na sede da empresa na Rua da Assembléia nº 74 e 76, no centro do Rio. Fora do então Distrito Federal, havia urnas em Diários de São Paulo, Minas Gerais e nas pequenas revendedoras da empresa espalhadas pelos estados no país. O povo se envolveu de tal maneira que o concurso bateu o total de 7 milhões de votos. Há relatos de boca de urna, empresários patrocinando campanha de jogadores e até um monoplano sobrevoando os bairros do Rio de Janeiro com propaganda de jogador. Quem levou a melhor foi o atacante vascaíno Russinho, batendo o incrível número de 2.900.649 votos. Para se ter uma ideia, a eleição para presidente, entre Júlio Prestes e Getúlio Vargas, poucos anos antes do concurso, somou a quantidade de 1.834.506 votos, destes 1.091.709 foi para eleito Júlio Prestes.

Como prêmio, o vascaíno levou para casa um automóvel “baratinha”, da fabricante americana Chrysler. Já o concurso gerou muitos desdobramentos, um deles é a composição do poeta de Vila Isabel, Noel Rosa, que fez o samba “Quem dá mais?”, cujo uma estrofe diz: “Quem dá mais, quem é que dá mais? Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/ que também é brasileiro/ em três lotes vendeu o Brasil inteiro/ Quem dá mais?”. Com o sucesso do samba de Noel, a companhia aproveitou para lançar nas rádios um jingle interpretado por Francisco Alves que informava em um dos versos: “O Brasil só vai fumar, cigarros Marca Veado/ pita, pita devagar, se é chique ou pé rapado”.

Russinho, do Vasco e a sua baratinha em 1930. Foto: Acervo Jornal do Comércio/Museu do Futebol.

Voltando ao João Francisco, além de ser proprietário da mais importante empresa de tabaco do início do século passado, foi um dos pioneiros da fotografia amadora no país, retratando, em enorme quantidade, as paisagens do Brasil. As imagens, fotografadas entre as décadas de 1880 e 1890, eram distribuídas como brinde aos clientes da Cigarros Veado. Foi um dos raros fotógrafos a realizar nus fotográficos no Brasil oitocentista e importante difusor da técnica da estereoscopia. Antes de voltar para Portugal e obter outros títulos para além da designação de Conde de Agrolongo e Visconde de Sande, Francisco dirigiu o Hospital de Beneficência Portuguesa, inaugurado em 1840 no bairro da Glória (o conjunto arquitetônico que abrigava o hospital foi arrematado em leilão judicial em 2013 por 60 milhões de reais pela Rede D’Or), financiou a construção de asilos, escolas e doou dinheiro para os cuidados dos tuberculosos no estado do Rio de Janeiro, e repetiu o feito em terras lusitanas. Sua residência, o Palácio do Ingá, em Niterói, foi comprado pelo governador Nilo Peçanha para servir de sede do governo fluminense.

 

Rua 1º de Março, Rio de Janeiro 1908. Autor: Conde de Agrolongo. Coleção: Fichel Davit Chargel

Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 1908. Autor: Conde de Agrolongo. Coleção: Fichel Davit Chargel

Palácio Monroe, Rio de Janeiro 1908. Autor: Conde de Agrolongo. Coleção: Fichel Davit Chargel

 

Esse movimento praticado por José Francisco, de saída para o Brasil em busca de riquezas e o retorno à terra natal com título de nobre e uma imagem de filantropo, não era uma exceção naquela época. Enquanto Portugal vivia uma das suas piores crises, os portugueses enxergavam no Brasil uma oportunidade de ponto de fuga temporário. Vivendo o período pós abolição, os estados brasileiros recebiam cada vez mais mão de obra europeia. Esses, assim que conseguiam acumular capital, arrumavam suas malas e iam embora reconstruir o seu país de origem.

Quando me deparei com parte do arquivo do Conde de Agrolongo na Biblioteca Nacional e algumas fotografias na coleção do jornalista Fichel Davit Chargel, vi que era hora de parar e retomar a escrita do artigo sobre infância. A máxima de que, quanto mais portas e janelas abrimos, maior é a nitidez e amplitude do modo como olhamos o mundo, faz muito sentido. Por fim, percebo que realizar esse desencaminho movido por minha curiosidade, visita um passado que dispara muitas reflexões sobre o nosso presente, além da compreensão da vasta possibilidade de operação dos arquivos e memórias, sobretudo no campo da arte, em um viés, como defende Suely Rolnik, “capaz de ativar experiências sensíveis no presente, necessariamente diferentes das que foram originalmente vividas.”. 

Fontes e referências:

CONDE de Agrolongo. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21861/conde-de-agrolongo>. Acesso em: 11 de Nov. 2020. Verbete da Enciclopédia.


ROLNIK, Suely. Furor de Arquivo. Arte & Ensaios :revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes de UFRJ, Rio de Janeiro, n. 19, dez 2009.

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Russinho, 1930: leader dos footballers do Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 20, n. 4, 2011

Luiz Fernando Pinto é artista, pesquisador, bacharel em teatro e mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio.