Através do espelho: feminino e autoimagem em tempos de pandemia

Por Tatiane Mendes

Reza a lenda que Narciso, filho do rio Cefiso e da ninfa Liriope, dotado de grande beleza, apaixonou-se pela própria imagem refletida em um lago e em desespero por alcançar o objeto de seu desejo, lançou-se às aguas, morrendo em seguida. O mito, que nos alcança ainda nos dias de hoje deixa entrever um questionamento: e se Narciso fosse mulher, poderia então ser atravessado pelo amor a si e conseguiria alcançar o êxtase ou sucumbiria, bombardeado por rótulos, enquadramentos, vozes externas que colam ao corpo e a imagem feminina pedaços de existências alheias à sua vontade. Como seguir ousando ser mulher face a tantos discursos, práticas e interdições que nos atravessam e prescrevem comportamentos e lugares? Enquanto corpos, somos fruto das construções sociais que delegam uma imagem e modelo a ser seguido, estrada que não admite desvios, reflexo de nossas mães e avós, peles, sonhos e práticas interditas por padrões de possíveis. E dos atravessamentos que atingem a pele, refletidos não somente nos espaços que teimamos em ocupar, em cidades quase sempre interditas ao exercício de ser mulher, seja na dimensão de feminino que pressupõe aquilo que se pode ou não fazer, seja nas múltiplas violências perpetradas, pelo Estado ou sociedade, no direito de ir e vir, sobre nossos corpos e vidas, sexualidade e afetos. Que narrativas podemos construir, uma vez que somos instadas a coexistir dentro de um limite de possibilidades e restrições e as estatísticas continuam a não mentem jamais. Em todas as cidades brasileiras o crescimento de até 50% nos casos de feminicídio1 durante a pandemia revela que ser mulher na atualidade é colocar o corpo à prova, todos os dias, enfrentando barreiras não somente físicas mas simbólicas que ainda perpetuam o direito à existir e resistir. Por outro lado, a cidade não é a mesma para homens e mulheres. A cidade se reparte em duas, devido à visibilidade e legitimidade dos espaços a serem ocupados, as apropriações físicas e culturais e os modos como as normas geram modos de invisibilidade das interdições com as quais somos confrontadas. Porque corpos femininos em espaços coletivos são quase sempre vítimas de violências desmedidas, todos os dias. É revelador que grande parte das cidades não incluam em seus planos diretores a necessidade de pensar políticas que englobem a proteção de mulheres2, tais como ações em transporte, educação, atenção à saúde, iluminação pública, uma vez que tais espaços, uma vez negligenciados, reforçam os números de agressões, como se corpos femininos não pudessem ou não devessem ocupar o espaço urbano, mesmo que a publicidade em grandes cidades quase sempre use os corpos femininos em suas ações. Em tempos de pandemia, o espaço físico urbano cede lugar ao espaço virtual em larga medida, colocando em perspectiva a opressão ao corpo feminino, onde a violência doméstica é um dos sintomas mais graves, em um contexto que limita a circulação de mulheres e, mais do que isso, o distanciamento social, que agrava o silêncio das vítimas e protege quase sempre os agressores. A violência que agride os corpos também toca almas, visibilizando desejos, imaginários e potências do feminino, que se vê restrito ao enquadramento externo, dos lugares que pode ou não ocupar e em um contexto onde a exposição de corpos, a afirmação da sexualidade e da liberdade podem ser um crime castigado com a agressão verbal ou física, seja na vida real ou no contexto virtual. Como é possível marchar na contramão dos lugares pré-concebidos de mãe, esposa, profissional e arriscar ser, apenas e simplesmente, mulher em todas as potencialidades e experimentações do possível? Talvez o percurso necessário seja justamente rasgar o mapa traçado pelas construções sociais que normatizam nossos corpos e reinventar outras rotas, ousando mergulhar na essência do que somos, corpos, desejos, mentes e sonhos, atravessando o mar de possíveis e ousando reexistir enquanto utopias de nós mesmas? E por que não arriscar olhar para dentro, em um convite a sair do lugar do feminino estereotipado e tocar nós mesmas, em um processo que envolve o caminho contrário do espelho, logo mergulhar no “eu” para identificar um existir livre de rótulos e amarras, mulheres que somos, inteiras, sem definições ou limites? Torna-se fundamental, tanto quanto propor enfrentamentos às políticas genocidas de cidades e países – que interditam o existir feminino em sua potência e diversidade – reexistir coletivamente, desatar nós e persistir na discussão sobre a imagem feminina que temos internamente, particularidades, nuances e ousar deixar nossos corpos falarem as narrativas que quiserem, libertas pela força da luta, diversas por princípio. E então apropriadas do que somos, decidiremos enfim a intensidade do mergulho, no lago e em nós mesmas, apaixonadas por aquilo que ousamos ser coletiva e individualmente. Somos pele e carne, seios e mãos, pernas e bocas, movimento e luta, acolhimento e rebeldia. E por que não, reexistirmos, em ousadia e enfrentamento, exercitando o subversivo direito ao amor próprio, à liberdade, de corpos, sexo e mentes, ocupando espaços, físicos e virtuais e produzindo imagens de fato nossas, com um olhar empático? Ao ousarmos enfrentar nossos juízes, internos e externos, seremos então definitivamente e coletivamente mulheres, fortalecidas pela circunstância de sermos plurais, potencializadas pela poesia de sermos livres.

  1. Tatiane Mendes – Mulher. Mãe. Carioca. Sagitariana. Bailaora. Nas horas vagas, fotógrafa, jornalista, professora e pesquisadora de comunicação. Escrevinhadora. Feminista por ancestralidade e teimosia. Doutorado em Comunicação Social com foco em Arte e Cidade.