Quem vai socorrer os malditos?

Nos anos 1980, a Rádio Fluminense FM irradiava rock and roll pra todo o Rio a partir do Centro de Niterói, e era um estrondo, sobretudo nas dobradas que fazia com o Circo Voador. A emissora se notabilizou por tocar os artistas ditos malditos, e numa edição do programa Revolution, em 1982, Sérgio Vasconcellos e Luiz Antônio Mello comentavam sobre Arrigo Barnabé, Jorge Mautner, Walter Franco, Sérgio Sampaio e Itamar Assumpção, que não conseguiam receptividade junto às gravadoras, mas tocariam na Flu FM Maldita justamente por carregarem essa pecha.   

Passados quase 40 anos desse episódio, e somado a isso o desaparecimento das grandes gravadoras e dos contratos com canais de TV, a impressão que tenho hoje, é que a maioria de nós, artistas brasileiros, somos meio malditos, meio marginais. Na teoria não precisamos das rádios, TVs ou jornais. Temos a internet, o Spotify, o Youtube, e as redes sociais para escoar os nossos trabalhos. Na prática sabemos que não é bem assim. Os fatores sociais e econômicos continuam ditando as regras, e os espaços físicos para shows, apresentações e exibições ainda contam e muito. 

Fiz essa introdução para falar sobre o agora, o momento da pandemia de Covid-19, e mais que isso, para falar sobre o pós. Precisamos dos nossos artistas vivos, dos produtores pulsando, dos grupos e coletivos ativos, e dos espaços culturais funcionando. Ao contrários dos governos da França e da Alemanha, que logo no início da quarentena elaboraram estratégias de longo prazo para mitigar os efeitos da crise no setor cultura, no Brasil, estamos no quinto mês de total apagão. Com sorte e muita batalha, nos próximos dias a grana da Lei Aldir Blanc começa a chegar nos estados e municípios, que devem promover prêmios, editais e o pagamento de auxílio emergencial. Para além disso, temos uma outra questão que é o futuro, já que até agora não nos foi apresentado um plano de recuperação do país, e a cultura não é vista como uma das alavancas da economia, e muito menos é prioridade para as autoridades. Nessa esteira, vários espaços culturais fecharam para todo o sempre, mas só teremos uma real dimensão deste número quando tudo isso passar. 

              Interior do Cine Orly abandonado em plena Cinelândia

Vez ou outra alguém ressuscita no facebook aquela lista dos teatros da cidade que fecharam nos últimos 25 anos. Eu proponho uma lista somente com espaços afetivos que cerraram as portas no período da pandemia, tipo as centenárias Casa Turuna e Charutaria Syria (ambas no Centro), Comuna, Casa da Matriz, Olho da Rua (as três em Botafogo), Hipódromo (Gávea), Café Secreto (Largo do Machado) e Toca do Vinícius (Ipanema). Tentei fazer um esforço para localizar os lugares que desapareceram na Baixada, Zona Norte e Oeste, mas foi em vão. O direito à memória nesse país, como bem sabemos, não é para todos, e isso se reflete inclusive nas comoções-seletivas que em geral não elegem espaços que encerram suas atividades fora do eixo Centro-Zona Sul.    

Voltando a indagação que dá título a esse texto, pergunto quem vai socorrer aqueles espaços sem patrocínio das leis de incentivo – e mesmo os que têm estão buscando ajuda, como aconteceu com o Grupo Estação, que apesar da parceria com a Claro-NET, precisou fazer um crowdfunding pra manter os funcionários e as contas em dia até o fim do ano. E como será o amanhã dos equipamentos malditos, que só contam com a bilheteria e com o consumo de seu público? Sabemos que nos próximos tempos as plateias serão reduzidas, e mais que isso, o poder econômico da população vai minguar. Esses lugares contam a nossa história, a história da nossa cidade, e precisam ser preservados. E nesse momento, isso depende principalmente do poder público.  

      Seu Zé Maria, funcionário da Companhia Cinematográfica Franco-Brasileira na porta do Cine Orly, na Cinelândia

Pouco antes da pandemia, passei na Rua Alcindo Guanabara, na Cinelândia, e dei de cara com o extinto Cine Orly (fundado em 1935 como Cine Teatro Rio) de portas abertas. Não exitei, e entrei. Dei um alô, e logo apareceu o Seu Zé Maria, 72 anos, e funcionário da casa há 31. Ele me contou que é marceneiro, e responsável pela manutenção desse espaço, do Cine Madureira, e de uma outra sala na Tijuca. Todos fechados, e pertencentes a Esplendor Filmes S.A. (Companhia Cinematográfica Franco-Brasileira), que segundo ele, possui cinemas de rua em várias cidades brasileiras. O Orly continua todo equipado, tem até projetor, mas carece de uma guaribada, e está pra alugar. 

Lembro que a artista visual Caroline Valansi tem um belíssimo trabalho intitulado “Cinema também é templo!”, que escreve em letreiros de cines fechados, chamando a atenção para o abandono desses espaços e para a reflexão sobre possíveis futuros. 

    Cinema também é templo!, de Caroline Valansi, no Cine Orly, Cinelândia (jan – jan/ 2016)

                    Cinema também é templo!, de Caroline Valansi, no Cinema Tijuca 1 e 2, Tijuca

Diante disso, volto a pergunta chave: Quem vai socorrer os malditos?

Eu estou falando é do Ponto Cine (Guadalupe), o maior exibidor de filmes nacionais do país, o Cine Santa (Santa Teresa), uma das salas mais charmosas da cidade, das Lonas Culturais e Arenas Cariocas, que pertencem a prefeitura e estão sendo barbaramente desmanteladas pelo governo Crivella. Eu estou falando é do Teatro Armando Gonzaga (Marechal Hermes), um projeto modernista de Affonso Eduardo Reidy, o mesmo arquiteto do MAM, que apesar de pertencer a Funarj, também está entregue a sorte. E o Cine Íris (Centro), inaugurado em 1909, e rechaçado por exibir filmes pornográficos. E o Teatro Serrador (Centro), fechado e abandonado pela prefeitura?

      O Cine Orly tem capacidade para receber até 276 espectadores

2020 é um ano eleitoral, e precisamos exigir dos candidatos um debate que aponte para a preservação da nossa memória coletiva, e a manutenção e ampliação de espaços de arte e cultura. Vale destacar que na cidade do Rio, 54% dos equipamentos estão localizados no eixo Zona Sul-Grande Tijuca-Centro, onde vivem apenas 1,4 milhão de pessoas. Enquanto isso, a Zona Oeste, com 2,6 milhões de pessoas, tem apenas 13 desses equipamentos. Já passou da hora da gente se organizar pra mudar esse jogo, afinal, cultura também é trabalho de base! 

   Cartazes no interior do Cine Orly

Alex Teixeira é artista multidisciplinar, mestrando em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (bolsista CAPES) e bacharel em Comunicação Social. Co-fundador da Peneira, desenvolve seus trabalhos em espaços não convencionais, utilizando-se do conceito de artes híbridas.