Um anti-arquivo da Lapa

 

Por Luiz Fernando Pinto

Incentivado pela disciplina “O que pode um arquivo?”, ministrada pelo professor Fred Coelho no mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, na PUC-Rio, dias atrás iniciei o que estou chamando de um anti-arquivo da Lapa, que consiste na organização da série de 35 cartazes (contabilizados até o presente momento) dos homenageados do Sarau do Escritório, entrevistas, ensaios fotográficos e o registro de suas participações no sarau. O anti-arquivo faz um contraponto a história hegemônica do bairro da Lapa, composta pela ideia do malandro, da boêmia, da prostituição e dos crimes passionais. O discurso sobre essa Lapa da malandragem foi incentivado sobretudo por artistas, escritores e intelectuais nas décadas de 1920 e 1930, considerado o período auge da região. Há uma gigantesca fortuna literária que possui a Lapa e seus mistérios como centralidade. Alguns exemplos marcantes são a Antologia da Lapa, organizada por Gasparino Damatta e os romances Lapa e Noturno da Lapa, de Luís Martins. Não tenho a pretensão de negar esse imaginário com a proposta do anti-arquivo. Mas ao contrário, desejo apresentar, no sentido benjaminiano, uma versão a contrapelo da história oficial, uma outra possibilidade de leitura sobre a Lapa, visando a criação de um outro imaginário a partir das histórias de vida dos homenageados, da relação com a cidade e suas experiências por meio do Sarau do Escritório. 

Cartaz do Sarau do Escritório – Homenageado – Magno Marques, o Freguesão.

Para os que desconhecem, o Sarau do Escritório surgiu em novembro de 2013, onde a Peneira, esse grupo de artistas-produtores oriundos de diversos territórios da região metropolitana do Rio, escolheu o bairro da Lapa, mais precisamente a praça João Pessoa em frente ao Bar da Cachaça, para realizar uma intervenção artístico-político-cultural, que ocorreu de forma assídua na região até meados de 2018. O coletivo vinha realizando ações artísticas em espaço públicos desde 2010, com ênfase em apresentações de espetáculos teatrais em ruas, praças e lonas culturais na Zona Oeste. Com a necessidade de se fixar em um território específico, escolheu a Lapa para a empreitada, por ser o local em que se encontravam para reuniões. Como não tinha sede, as mesas do Bar da Cachaça transformaram-se em escritório, daí o nome do sarau. A Peneira foi criando estratégias de relacionamento com o bairro da Lapa no decorrer das edições mensais, incorporando à execução do evento dispositivos que propunham dar luz a um outro imaginário de Lapa, sem negar o mito criado no passado, mas apontando outras narrativas até então ofuscadas pelo discurso hegemônico presente na região através de enunciados que enfatizavam uma Lapa “vendável”. Foi neste contexto que surgiu o homenageado do mês, um dispositivo que acompanha o evento desde a primeira edição, quando o sarau resolveu apostar no resgate da memória afetiva da região central do Rio de Janeiro homenageando pessoas anônimas que viveram nessa parte da cidade. O homenageado do mês surge da vontade de descobrir e desvendar um outro Centro. A disputa de um imaginário da rua, em um espaço de efervescência cultural como a Lapa, é algo que não faz sentido sem que os protagonistas estejam envolvidos. Uma das características do dispositivo é a elaboração de cartazes com o rosto do homenageado estampado e que, em formato lambe-lambe, são afixados em espaços públicos da cidade. 

Apresentação de Luana Muniz no aniversário de 2 anos do Sarau do Escritório.

Baile de Gala do Sarau do Escritório – Apresentação de Luana Muniz – Foto: Victor Coutinho

Revisitando os registros das edições passadas do Sarau do Escritório me deparei com as imagens da trigésima edição do evento, ocorrida no dia 25 de maio de 2017. Nesse momento, o evento já havia se consolidado na agenda cultural da região metropolitana do Rio de Janeiro, e o público frequentador podia acompanhar o ritual do sarau que iniciava semanas antes nas redes sociais. No evento do Facebook foi anunciado o rebatismo da praça onde ocorre a ação, de João Pessoa, para Luana Muniz, a Rainha da Lapa. Sobrinho de Epitácio Pessoa, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930) foi um político brasileiro, nascido na Paraíba e assassinado, com dois tiros, em Recife. Não encontrei nenhum registro de qualquer relação entre João Pessoa e o território da Lapa, mas mesmo assim foi celebrado dando nome ao logradouro. Já Luana Muniz, foi homenageada no mês de novembro de 2015 no sarau. Luana era conhecida como a Rainha da Lapa, fundadora de uma associação que abrigava travestis de diversos estados brasileiros, atriz, profissional do sexo, agente de saúde e travesti. Na entrevista que concedeu para o Sarau do Escritório, à época em que foi homenageada, contou que, “apesar dos 40 anos de Lapa, todos eles fazendo ponto na praça João Pessoa, nunca havia se apresentado no bairro”. Quando o relógio bateu a meia-noite do dia 25 de maio, os apresentadores do Sarau do Escritório relembraram ao microfone a entrevista feita com Luana Muniz e o número artístico realizado na edição de aniversário do evento, em que ela se caracterizou de malandro e se transformou em passista de escola de samba. Por fim, afixaram uma placa, similar a essas de rua utilizadas pela prefeitura, com o escrito “Praça Luana Muniz – Rainha da Lapa”, ao lado da placa João Pessoa.

 

Placa afixada na antiga praça João Pessoa

Luiz Fernando Pinto é ator, escritor e pesquisador. Atualmente está como diretor presidente da Associação Cultural Peneira.