✂ Em processo de montagem – da relação ao corte 

Por Priscila Bittencourt

Mestre Jorge – Filme União – Foto: Priscila Bittencourt

 

Em dois mil e vinte fiz trinta e quatro anos, completei quatorze anos desde que entrei no ensino superior. A antropologia, cinema, a troca, Jean Rouch, o núcleo Nextimagem. Onze anos desde a primeira vez que fui a uma aldeia indígena trabalhar com audiovisual. De lá pra cá foram horas e horas, de histórias de vida, muitas vidas registradas. Horas, dias, anos, acúmulos. Memórias. M e m ó r i a

“Tudo que posso dizer hoje é que no campo o simples observador se modifica a si mesmo. Quando ele está trabalhando ele não é mais aquele que cumprimentou o velho homem ao entrar na aldeia, (…) ele está ‘cine-etno-olhando’, ‘cine-etno-observando’, ’cine-etno-pensando’. Aqueles que com ele interagem igualmente se modificam a si mesmos, a partir do momento em que confiam neste estranho habitual visitante. Eles ‘etno-mostram’, ‘etno-falam’, (…) ‘etno-pensam’, ou melhor ainda, eles têm ‘etno-rituais’. É este permanente cine-diálogo que me parece um dos ângulos interessantes do atual progresso etnográfico: conhecimento não é mais algo a ser roubado para ser mais tarde consumido nos templos ocidentais de conhecimento. É o resultado de uma busca interminável onde etnógrafos e etnografados de encontram num caminho que para alguns de nós já chamam de ‘antropologia compartilhada’” (Rouch, 2003c:185. apud GONÇALVES,2007)

Desde dois mil e sete essa citação vem na minha cabeça em todo novo trabalho. Quando eu digo todo, é em todo mesmo! Até quando vou fotografar para uma grande marca de supermercados. Porque sempre parto da ideia de troca com pessoas, das relações. As relações. Tenho um gosto por todo o ritual de criar relação, de aproximação, de ser a estranha que logo se torna alguém familiar. Da relação à troca. “Viver em clausura ou abrir-se ao outro” como apontou Glissant. R e l a ç ã o. T r o c a. Como eu gosto disso! 

Como mulher não branca, latino americana e com minha mãe maria ninguém, arrisquei o caminho do encontro, e dele formar narrativas, fazer arte. Uma existência em que nada vem pronto, tudo é conquistado, construído e muitas vezes invisibilizado ou até usurpado. Uma massa de ideias, referências e acúmulos, para gestar outra coisa. Processo análogo ao parto. 

Em dois mil e vinte, aos trinta e quatro anos, pari meu primeiro filho, o Francisco Pinto Bittencourt. Em dois mil e vinte, tô em processo de parir meu primeiro filme. Assim, meu mesmo, sabe? Assim como meu filho, feito em dupla e com a bagagem de uma comunidade, nascer e criar. O União. Filmado em 2018 em São Cristóvão – SE. O encontro com mestre Jorge e as meninas. O bloco mais antigo da cidade. As mais novas das meninas estão na casa dos sessenta anos. Elas nos receberam a mim e ao Luiz Fernando Pinto, de braços abertos. Elas são pura história de vida. Com vivacidade, espalhando cores e cheiros. Sorte a minha ter podido ser a que passou de estranha a habitual visitante. 

Integrantes do bloco União – Foto: Priscila Bittencourt

 

Tive um hiato necessário entre a filmagem e a montagem, na brecha construí outra ponte, o Fabulações do Território – Rua Joaquim Silva. Ali me alimentei dessa mania de ir ao encontro do outro para gerar outras narrativas, para criar clarões nas cidades, indo ao encontro dos vaga-lumes (Didi Huberman, 2011). São processos distintos mas com um tanto em comum. É o compartilhamento de processos de vida, a conexão com o outro a partir da memória para criar histórias fabulatórias. O compromisso de não só dar o start, mas de  lapidar, formular estratégias, para que os vagalumes brilhem muito mais e alcancem outros clarões. Em dois mil e vinte, mais uma etapa do compromisso firmado da sequência metodológica de ao conhecer outras narrativas e “estreitar laços com o território, criar registros e potencializar outras narrativas e em consequência gerar documentos“, (Bittencourt, Priscila; Pinto, Luiz, 2020). A citação tá aqui porque rola um orgulho danado de, apesar de todos os atravessamentos e obstáculos, seguir com o compromisso com o outro. Este, firmado não só ao trazer minha bagagem para Peneira nesses últimos quatro anos, mas comigo mesma há quatorze anos. Trata-se de um processo contínuo. Os processos são feitos sempre por pessoas, fruto de desejos, conhecimentos e conexões. Não são espontâneos ou naturais. 

Pesquisa de campo – Fabulações do Território – Foto: Victor Coutinho

Agora, a ilha de edição tem sido um dos meus principais espaços/tempo nessas últimas semanas. Voltar a visitá-los tem sido um exercício árduo, que em cada frame é um desafio. O tempo e distanciamento foram necessários para dar forma ao filme. Ilhada, sinto desejo e a ânsia em corresponder ao que me foi presenteado, ao poder acompanhá-los e registrá-los. Ao mesmo tempo, significa estar cada vez mais perto de cumprir o compromisso firmado a partir do encontro. Ainda em paralelo com a maternagem, é o filme possível.

Estou aqui em processo de criação. C r i a n d o. O filme só existe quando montado, só termina quando acaba. Sensação de estar abrindo caminhos. Todos os dias são dias para abrir caminhos. Em dois mil e vinte, tem filme novo nascendo. Me sinto um pouco vagalume também. 

Por hora, quem ficou curioso, pode ir dar uma olhada no site da Peneira ver mais algumas fotos do filme e uma breve sinopse. Pra quem ficou com vontade de ler o livro do Fabulações do Território, manda uma mensagem pra gente. Ali você conhece um pouquinho mais do que foi esse processo de criação a partir do envolvimento e colaboração de cada um, cada um com sua bagagem. Sigo aqui desenvolvendo formas de levar os encontros e minhas narrativas a partir deles, adiante.

Priscila Bittencourt é cientista social, montadora e diretora de arte, projeto e comunicação da Peneira.

 

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