Poemas de Uma Quarentena

Por Livia Araujo

 

Manchas Vermelhas (13/07/2020) 

Hoje de manhã

Tiros rasgaram o céu

Eu dormia profundamente

Estava no único lugar seguro que conheço

Minha mente

 

Esses tiros acharam um corpo

Em frente ao pequeno mercado

Na rua principal da favela

No corpo de um trabalhador no horário de trabalho

 

Não sei ao certo quem

Mas as manchas vermelhas estavam lá

No chão daquele armazém

Com as pessoas em seu vai e vem

Ninguém estava assustado

É comum sangue no asfalto

Principalmente se for de favelado

 

Eu passei por ali

A máscara cobria o que senti quando as vi

E se eu estivesse bem ali

Naquele momento

Naquele instante

Na fração daquele segundo

Eu iria resistir?

E se atingissem meu coração?

E se fosse das minhas veias

Aquela mancha vermelha no chão?

 

Não sei como o homem está

E se ele morresse?

Seria só uma gota a mais

Num mar vermelho sabor metal

Que aumenta seu nível toda vez

Que uma bala atinge de modo fatal

 

Me Solta (03/09/2020)

Já passava da meia noite

Eu estava na cozinha quando escutei 

Com a voz de choro

Ofegante

Uma mulher gritando

“Me solta, me solta”

Quando fui à varanda eu a vi

 

Era uma mulher jovem

De longo cabelo preto e liso

Esse cabelo preso na mão de um homem 

Que fala num tom baixo, mas ameaçador 

“Você acha que tá certa?”

“Você acha que isso tá certo?”

 

Ela só repetia

Me solta

Me solta 

Me solta

 

1,2,3,4,5,6

Não sei quantas foram as vezes

Mas foram vários os barulhos da cabeça dela

Em direção a parede 

Barulhos altos

Dava para ser escutado de longe

 

Quatro pessoas viram fora a mim 

Dois homens

Duas mulheres 

Ninguém nada fez 

Nem eu

 

O que eu poderia fazer? 

Não tenho força

Não conseguiria parar um homem daquele tamanho 

Os outros que viram

Eles tinham força?

Eu não sei

Só sei que o beco ficou em silêncio 

Enquanto ela repetia

Me solta

Me solta

Me solta

 

Minhas mãos tremiam pela revolta 

Minha voz se engasgava na garganta

Me senti tão pequena e indefesa 

Não tanto quanto a mulher

Mas sentia

 

Eu com meus 17 anos

Só possuo a arma da escrita

Eu escrevo o que eu vejo

Eu faço a voz que estava engasgada sair nas letras 

Mas se eu realmente ajudo de algum jeito

Eu não sei

Mas continuo a escrever

 

As gotas de sangue dela

Estão na frente do portão de casa

E na parede da casa vizinha

Pequenas gotículas

Que eu espero que não se tornem uma poça

E que essa moça sobreviva

Não se torne mais um número

Da triste estatística de feminicídio no mundo

A ideia do livro Poemas de Uma Quarentena surgiu de um trabalho de filosofia no EAD. A atividade que minha professora, Lysa Sfeir propôs era “reflexões sobre covid-19 e atitudes antiéticas”. Esse trabalho me inspirou a escrever o poema intitulado Nuvem, foi a partir dele e de outro que havia escrito anteriormente que comecei o livro. O meu intuito é a partir das poesias  poder contar esse período de quarentena como uma espécie de diário. Aqui, conto os fatos do mundo, do Brasil e da favela onde moro e, uma vez ou outra, sobre mim mesma. Infelizmente, o que mais irá encontrar neste livro são relatos de revolta, atos cruéis que vi em jornais e presenciei. Descaso com a natureza e com a saúde, preconceito, atos de ódio, dentre outros tristes acontecimentos. Por ser do grupo de risco, a doença me assusta e muito, mas o que mais me deixou horrorizada foi a negação da doença. A ignorância está sendo o mais letal dos vírus, porém, como gosto de dizer, o caos me inspira a escrever.

Livia Araujo tem 17 anos e escreve poesias desde os 11. Filha de pais paraibanos, é a caçula de três irmãs. Nasceu e vive no Rio de Janeiro, na comunidade Parque Arará, em Benfica. Estudante do CIEP 241 Nação Mangueirense Governador Leonel de Moura Brizola, participou de duas edições do Flup Slam Colegial. A III edição, em 2018, no Museu do Amanhã, ficou em 4° lugar, e a IV edição, na XIX Bienal do Livro Rio, ganhou o prêmio Ecio Salles, alcançando a 3ª colocação.  Integra, com o poema “As Mulheres na História”, a Cartonera do Escritório – volume II, editado pela Peneira em 2020.