Este texto é sobre poesia

Por Luiz Fernando Pinto

O ano de 2013 estava terminando. Era difícil imaginar que tudo fosse acontecer daquela maneira e que chegaríamos à realidade na qual estamos agora. Embalados, por um lado, pelo desenvolvimento do país, e, de outro, por uma indignação coletiva motivada pelo cenário político nacional, sentíamos que poderíamos ir além e modificar a pirâmide social brasileira. Ledo engano. De acordo com pesquisa da Síntese de Indicadores Sociais, divulgado em dezembro de 2018 pelo IBGE, 54,8 milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza, ou seja, 1/4 da população nacional tem renda domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 por mês, de acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial. Um crescimento de 33% com relação a 2013, período em que o Brasil havia alcançado índices positivos com relação a erradicação da pobreza¹. Eu estava lá, entre os populares, não os de camisa amarela, com a sensação de não estar sozinho, mas o buraco era muito mais embaixo. Como diz o jargão viral das periferias, “deu ruim”. Porém, aquela junção de pessoas se desdobraria, para além do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em algumas ações que mudaria o cotidiano dos territórios no país. Apesar desta ambientação, este não é um texto sobre as manifestações e o golpe que assolou o Brasil. O texto é sobre poesia, daquela inspirada em épocas não tão longínquas, como os tempos dos poetas da Geração Mimeógrafo² envoltos em sua Nuvem Cigana³, ou os anos em que se iniciavam os Cadernos Negros (4) com a série de produções literárias afro-brasileiras. Mas sobretudo, esta é a primeira parte de um relato sobre a poesia realizada nos saraus poéticos do Rio de Janeiro, onde a sua grande maioria foi impulsionada pelas Jornadas de Junho de 2013, e que não está deslocada de todo movimento de poesia realizada no país em tempos anteriores.

Estandarte do Sarau do Escritório (Foto: Priscila Bittencourt)

Havia marcado bem cedo com o Bartolomeu Junior (5) na estação de trem de Senador Camará para irmos juntos ao centro da cidade. Bartô, como comumente era chamado, escrevia poemas, pintava quadros incríveis (a coleção O Negro na Cultura Popular Brasileira foi uma das que ganhou visibilidade pelas dezenas de exposições realizadas pelo artista), administrava a primeira biblioteca comunitária do Complexo de Favelas de Senador Camará e Vila Aliança, na zona oeste da cidade do Rio, a “Quilombo dos Poetas” (6), e naquela ocasião estava buscando possibilidades de realizar mais uma edição do “Chá com Letras”, um evento de artes múltiplas mas com enfoque no recital de poemas, um sarau. Conheci Bartô em 2010, no Ponto de Cultura (7) A História Que Eu Conto, onde era localizada a biblioteca. Eu coordenava o curso de teatro que acontecia no espaço e vira e mexe trocava umas ideias sobre poesia com o Bartô. Entre as prateleiras abarrotadas de livros e o entra e sai de crianças em busca de dicas de leitura, lembro-me que foi numa dessas ocasiões que ele me indicou os poemas de Carlos de Assumpção. (8)

Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (9), realizada pelo Instituto Pró Livro, 44% da população brasileira não lê. As bibliotecas comunitárias, assim como os saraus, festas literárias e salas de leitura, convertem a leitura em experiência, ampliando o horizonte do público e fomentando o acesso ao livro. Essas ações são importantes instrumentos de formação de novos leitores e de democratização do acesso à literatura.

Pegamos o trem sentido à Central do Brasil, como era horário do rush, o vagão estava ainda mais cheio. Espremidos próximo a porta, seguimos viagem. No trajeto conversamos sobre os saraus de poesia já existentes e os que estavam surgindo em diversos territórios do Rio de Janeiro após junho daquele ano. Minha referência de uma dita cena de saraus, era o que estava acontecendo em São Paulo com a Cooperifa, Suburbano Convicto, Sarau do Binho, Sarau Elo da Corrente, dentre outros que surgiram no início dos anos 2000. Depois tomei conhecimento do movimento poético bem fortalecido em outras cidades do país, como Salvador, Recife, Belo Horizonte, Aracaju, Teresina e Natal. Sabia de alguns saraus em atividade no Rio, como o Sarau do Ameopoema, CEP 20.000, Ratos di Versos, Poeta Saia da Gaveta, Corujão da Poesia, Uma Noite na Taverna, mas não se compara a quantidade de saraus que teríamos dois anos mais tarde.

Bartolomeu Junior no Sarau do Velho, em Senador Camará (Foto: Priscila Bittencoourt)

Chegando na Central do Brasil, rumamos para a Lapa, Bartô ficou pela rua Gomes Freire, onde fecharia uma data para a terceira edição do Chá com Letras, no bar Salsa e Cebolinha, em parceria com o ator e agitador cultural Marcondes Mesqueu. Segui para o Bar da Cachaça, na praça João Pessoa, e, junto de Michele Lima, Karine Drumond, Taty Maria e Alex Teixeira, participei da primeira reunião de produção do Sarau do Escritório que teria a sua estreia no mês de novembro de 2013.

As manifestações foram ganhando uma nova roupagem com camisas da CBF predominando entre as ruas de Copacabana. Já os saraus, se fortaleceram criando conexões entre os bairros da região metropolitana e se transformando em um importante dispositivo de mediação de leitura e fomento a escrita. Passei 2014 tentando compreender o boom de saraus no Rio de Janeiro, acredito que até hoje há muito a se desvendar, é significativa a importância desse período para a cultura e para os movimentos artísticos de resistência que até hoje promovem ações de impacto nos territórios. Algumas coisas são nítidas, esse foi um período de muita produção e networking, eu particularmente circulei boa parte da região metropolitana por causa dos saraus e aumentei consideravelmente meu repertório de poesia adquirindo fanzines, cartoneras e livros que eram vendidos pelos poetas nesses espaços. Na tentativa de assimilar a cena de saraus que estava se formando, em 2015 lançamos, através do Sarau do Escritório, o Mapeamento dos Saraus do Rio (10). Os dados da pesquisa revelaram que havia 133 saraus em atividades na região metropolitana do Rio de Janeiro e que 100 saraus passaram a existir a partir de Junho de 2013, incluindo o Chá com Letras, do Bartô, e o Sarau do Escritório.

De 2015 para cá, muitas águas rolaram, e como a poesia sempre está em movimento, a cena foi se modificando com novos atores e desafios, mas como já vimos anteriormente, o presente tem resquícios do passado. Ainda há muitos relatos a serem ecoados por aí.

Notas:

¹ – IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, 2018 Disponível em: www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/condicoes-de-vida-desigualdade-e-pobreza/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?=&t=publicacoes Acesso em 18 de setembro de 2019.

² – PEREZ, Luana Castro Alves. “Poesia Marginal”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/poesia-marginal.htm. Acesso em 18 de setembro de 2019.

³ – COHN, Sergio. Nuvem cigana – poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Azougue, 2007.

4 COSTA, Aline. Um pouco de histórias de Cadernos Negros, 2008. Disponível em: https://issuu.com/mbantu/docs/historicotresdecadas Acesso em 18 de setembro de 2019

5 Bartolomeu Barbosa de Jesus Junior iniciou oficialmente o seu ofício de pintor em 1981 como autodidata. Atuou como livreiro de rua, fez parte da Sociedade Brasileira de Belas Artes, criou obras significativas para a cultura negra, como a exposição “O Negro na Cultura Popular Brasileira” e “África: Arquétipo do feminino”. Criou, ao lado de Andressa Gonçalves, o Chá com Letras. Faleceu em 28 de março de 2018 deixando obra artística significativa, dentre elas contos e poemas.

6 A “Quilombo dos Poetas”, faz parte da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias que conta com mais de 100 unidades espalhadas pelo país

7 Os Pontos de Cultura fazem parte do Programa Cultura Viva, que tem por objetivo incentivar, preservar e promover a diversidade cultural brasileira, ao contemplar iniciativas culturais locais e populares que envolvam comunidades em atividades de arte, cultura, educação, cidadania e economia solidária. Tal política pública foi de suma importância para potencializar a produção de cultura no territórios. Muitos dos artistas que militam no campo da poesia tiveram em sua trajetória participações em ações do Programa Cultura Viva. Ver mais em  http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3167/1/livro_pontosdecultura.pdf

8 Carlos Assumpção nasceu em 23 de maio de 1927 em Tietê/SP. É Advogado militante na Comarca de Franca/SP. Membro da Academia Francana de Letras, tirou o primeiro lugar no AII Concurso de Poesia Falada, de Araraquara/ SP, em 1982, com o poema Protesto. Em 1958, por ocasião do 701 aniversário da Abolição, recebeu o título de Personalidade Negra, conferido pela Associação Cultural do Negro, em São Paulo/SP. Autor de “Meus avós”, “Protesto”, “Poema Verídico”, dentre outros. Ver mais em www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/09/conheca-o-poeta-negro-de-92-anos-comparado-a-drummond-e-joao-cabral.shtml

9 Os dados são referentes ao ano de 2015, a pesquisa é feita a cada quatro anos. Ver mais em http://prolivro.org.br/home/atuacao/28-projetos/pesquisa-retratos-da-leitura-no-brasil/8042-downloads-4eprlb

10 A construção da pesquisa durante o ano de 2014 foi reveladora e instigante, pude ver de perto as particularidades e as semelhanças dos saraus em atividade no Rio. O lançamento do mapeamento ocorreu no Baile de Gala do Sarau do Escritório, no dia 21/11/2015, evento de comemoração dos dois anos de atividade do sarau. A ação contou com mais de 200 atrações na Praça João Pessoa, Lapa. Ver mais em https://oglobo.globo.com/cultura/musica/sarau-do-escritorio-lanca-mapa-de-saraus-do-rio-18096071

Fotos: Priscila Bittencourt

Referências bibliográficas:

COHN, Sergio. Nuvem cigana – poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Azougue, 2007.

BARBOSA, Frederico/ CALABRE, Lia (Organizadores). Pontos de Cultura: olhares sobre o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2011

CULTURA, Binho, A História Que Eu Conto, Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. Coleção Tramas Urbanas

IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, 2018 Disponível em: www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/condicoes-de-vida-desigualdade-e-pobreza/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?=&t=publicacoes Acesso em 18 de setembro de 2019.

PEREZ, Luana Castro Alves. “Poesia Marginal”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/poesia-marginal.htm. Acesso em 18 de setembro de 2019.

COSTA, Aline. Um pouco de histórias de Cadernos Negros, 2008. Disponível em: https://issuu.com/mbantu/docs/historicotresdecadas Acesso em 18 de setembro de 2019

Sarau do Escritório lança “mapa de saraus” do Rio, Jornal O Globo – Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/musica/sarau-do-escritorio-lanca-mapa-de-saraus-do-rio-18096071  Acesso em 20 de setembro de 2019

Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias – Disponível em https://www.rnbc.org.br/

Sarau do Escritório, Peneira –  Disponível em https://peneira.org/portfolio_main/sarau-do-escritorio/ Acesso em 20 de setembro de 2019

Retratos da Leitura no Brasil – Disponível em http://prolivro.org.br/home/atuacao/28-projetos/pesquisa-retratos-da-leitura-no-brasil/8042-downloads-4eprlb Acesso em 13 de setembro de 2019

Saraus e Poesia de Rua – Instituto Moreira Salles SP,  Disponível em https://ims.com.br/eventos/saraus-e-poesia-de-rua-ims-paulista/ Acesso em 17 de setembro de 2019

Conheça o poeta negro de 92 anos comparado a Drummond e João Cabral, Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/09/conheca-o-poeta-negro-de-92-anos-comparado-a-drummond-e-joao-cabral.shtml Acesso em 18 de setembro, de 2019

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