Onde mora o encantamento

Por Marcele Oliveira

Pra falar de mim e da pandemia da COVID-19, que nos faz estar há mais de 70 dias em isolamento social no Rio de Janeiro, eu preciso falar do lugar onde tudo isso se encontra agora: a minha casa.

Minha casa não tem endereço certo. Ás vezes é Realengo, ás vezes é Magalhães Bastos. Tudo aqui já mudou de lugar. Acho que é  porque aqui nessa família a gente também muda bastante. Somos três filhos e cada um de nós vai ter lembranças de uma casa diferente. Mudam as paredes, os cômodos, as cortinas, os vizinhos, as rotinas… Mas é sempre a mesma casa, a nossa casa. Cada cantinho dela me conta uma história e a parte boa de estar aqui é poder relembrá-las. Histórias de luta, de amor, de tristeza, de saudade… Escrevo esse texto como uma forma de eternizar as coisas que Realengo e essa casa de número 17 me ensinaram. O único 17 que eu respeito.

Se essa casa falasse, dava filme! Dois, pelo menos. Foi aqui que eu dei os primeiros passos, aprendi a falar, fiz muita pirraça, curti chuveirão no quintal, admirei o céu sentada na calçada e percebi que a Lua também é bonitona por trás dos fios de telefone. Longe da praia e perto das pipas. Sim, foi perto da linha do trem, do rio poluído que no ano novo era pano de fundo dos fogos e do Parque Estadual da Pedra Branca que eu vi os céus mais coloridos. Infelizmente nunca aprendi a soltar pipa. Mas joguei muita bolinha de gude! Lembro que juntava várias na garrafa pet e encarava aquelas cores que elas tinham dentro como jóias. Ficava até triste triste quando perdia alguma. Eu me escondia embaixo dos carros no pique esconde, fazia o golzinho do futebol com chinelo e adorava poder jogar pau-na-lata com o cabo da vassoura já quebrada. Foi aqui que eu fui criança. E é aqui que eu sou adulta. Atenta. Saudosa. Tenho quase certeza que o Sol aqui brilha mais forte. 

A minha parte do bairro tem mais casas do que prédios – e morar em casa é completamente diferente de morar em apartamento. Cresci aqui na região sem frequentar muito o Parque Real ou Parque Leopoldina. Na COHAB – conjunto habitacional cor de creme que eu sempre achei que fosse laranja – ficava só na praça e me perdia sempre entre os prédios. Minha mãe um dia me contou que a nossa vila já havia sido um grande campo de futebol. Ou seja, lotearam e venderam quase tudo ao mesmo tempo. Resultado? Famílias que se tornaram vizinhos e vizinhos que se tornaram família. Só percebi que falava alto quando fui, com 20 anos, pra um apê no Rio Comprido – mais perto da faculdade, do trabalho e, infelizmente, longe de casa. Porque acho que casa mesmo a gente só tem uma. Conto essa história só pra dizer que nunca me acostumei com os apartamentos. E tenho pra mim que ninguém aqui acostumava: por isso a gente ficava na praça, na calçada e na esquina. Como uma grande família que não divide o mesmo teto mas divide a mesma casa. O mesmo lar. O mesmo bairro. 

Bem, a primeira morte por COVID-19 no Rio foi de uma empregada doméstica. A patroa voltou contaminada da Itália e a manteve em serviço. Segue viva a patroa. Segue viva também a blogueira famosa que fez parte de um dos primeiros ciclos de contaminação registrados e, após melhora, deu festinha em casa. E postou. POSTOU. Sabe quem não segue vivo? João Pedro. Iago. Agatha. Evaldo. Roberto,  Carlos Eduardo,  Cleiton, Wilton e Wesley. Anderson e Marielle. Marcos Vinicius. 

“Ah, mas não é a mesma coisa”. Ok. Vamos lá. 

“Em-tres-bairros-da-zona-oeste-um-em-cada-cinco-casos-acaba-em-morte”. Corona. 

Bangu, bairro vizinho, tem a taxa de letalidade em 20,5%. Realengo estava em 19,2%. Letalidade = morte = a gente tá morrendo e o vírus nem começou aqui. Mas é aqui que se morre de vírus, se morre de fome, se morre de guerra e se morre por ser quem se é. 

“Rj-9-em-cada-10-mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos”. Necropolítica. 

Necropolítica. 

[ne-cro-po-lí-ti-ca] substantivo 

Etimologia necro + política do grego: política de morte. 

Conceito cunhado pelo filósofo negro camaronense Achille Mbembe para explicar como o Estado determina um critério racial para definir o corpo “matável”, quem será deixado para morrer. (@midianinja)

Não é a mesma coisa? 

Acho que tem sido. 

Voltando pra Rua. 

É engraçado pensar que nos tiraram desse lugar onde – poeticamente – nos sentimos mais fortes. Pois bem: meu pai não sossega em casa nem por um decreto. Sai de máscara e diz que mantém o tal distanciamento de 1,5m – mas não fica um dia inteiro sentado no sofá de jeito nenhum. Percebi que a minha relação com a rua também é reflexo da relação do meu pai com ela. Eu lembro dele e das idas pra igreja ao domingo que se transformavam em conversas pelo caminho. Da participação sempre disposta nas procissões e na distribuição de quentinhas. Da conversa no bar da nossa esquina e da esquina de duas quadras a frente, que ele até gostava mais, não lembro ao certo o por quê. Meu pai é aprendizado pra caramba. E muita rua. Realengo que o diga: 2.605,42 hectares de rua e gente pra todo lado.

Hoje eu também percebo que ser criada no subúrbio é também aprender a ser coletivo. Aqui a gritaria na rua rapidamente se transforma em vários olhinhos nos portões. O tiro que assusta as crianças que estão brincando vira correria e vale o portão do vizinho mais próximo. A gente pode até não ter casa com piscina grandona mas sobram mangueiras e é suficiente. Tenho foto minha com primos felizes da vida dentro de uma caixa d’água velha. Aqui sobra “bate lá na casa da Fulana pra ver como ela tá” e sobra “vem cá que eu fiz um caldinho!”. E o google ainda me insiste em colocar a foto de um cara armado quando eu pesquiso “Realengo”. Sabe de nada ele! A sabedoria mora nos ímãs de geladeira e no filtro de barro. No vento que levanta quando o trem passa direto na Estação. No grafite que eterniza o sentimento embaixo do Viaduto. Nas crianças que correm na rua – e, na impossibilidade de correr, gritam pelas janelas uma pra outra. Eu já falei que amo morar em casa?

Longe da rua e respeitando o isolamento social, cá estou eu criando um moleque preto. Meu irmão. Num Estado onde a polícia que mais mata e mais morre segue atuando em meio a pandemia – que a gente chama aqui em casa de apocalipse. Ele vive bem. Eu nem tanto. Mas nós juntos somos força, filme, anime, pizza, refrigerante, soneca agarrado e vez ou outra estoura uma briga. 12 e 21 são opostos que se completam – mas seguem sendo opostos. E eu quero ele vivo pra ler esse texto no futuro – contrariando essas estatísticas todas e esse vírus micróbio do caramba. Te amo, criança. Não imaginaria você crescendo em um lugar diferente de Realengo/Magalhães. Os nossos bairros. Onde mora todo o encantamento que nos faz ser quem a gente é. E onde fica o melhor lugar do mundo: a nossa casa, construída tijolo por tijolo pelos nossos pais. 

E se aqui mora o encantamento, não só para mim e para o Gabriel, mas para os mais de 180 mil habitantes segundo o IBGE 2010, eu escrevo pra dizer que eu não desisto. Nem de mim, nem dele, nem dos vizinhos, nem dos projetos, nem da distribuição de cestas básicas, nem da produção de conteúdo que ecoa vozes das incríveis redes de solidariedade tecidas pela sociedade civil nos canais ao qual eu tenho acesso. 

Meu nome é Marcele Oliveira.

Irmã do Gabriel, da Vanessa e da Hérica.

Filha do Seu Wagno e da Dona Fátima.

Cria do Formigueiro, ali entre Realengo e Magalhães de Bastos.

E, por nós, eu não desisto.

E acho que escrevo para que você também não desista.

Principalmente se você for da quebrada.

Principalmente se você for da correria.

Porque a gente carrega histórias que são nossas mas que também são de quem lutou antes da gente.

Então a gente vai vencer.

A gente já venceu!

O encantamento mora a(qu)i dentro. 

 

*esse texto foi escrito em maio de 2020 e retocado no começo de junho do mesmo ano.

Marcele Oliveira é cria de Realengo, produtora, comunicadora e ativista social.

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