Ponto de partida
Em minha infância no Rio meus pais levavam meus irmãos e eu a passeio ao calçadão de Campo Grande. Sentávamo-nos nas altas banquetas da loja Silbene – antiga grande loja de departamentos – para fazer um lanche. Lembro dessas memórias mais por contadas do que por vividas, tampouco guardo uma lembrança visual desses lugares. Mas alguns cheiros de lanchonete nos centros de cidades que visito ainda me fazem viajar no tempo, trazendo a leve sensação de balançar os pés, sentada sobre as banquetas, deliciando-me com o lanche.
Esses passeios eram sempre feitos de ônibus, porque papai só foi ter carro muitos anos depois, quando morávamos num conjunto habitacional em Realengo. Mas meu pai, muito caseiro, e minha mãe, deficiente auditiva, dificilmente animavam-se a carregar as três crianças de ônibus pela cidade, já naquele tempo, de difícil mobilidade para quem morava no subúrbio. Então, acabávamos nunca indo mais longe que a Tijuca. Apenas uma vez fomos visitar uma tia-avó muito idosa que morava em um edifício que julguei romantiquíssimo, na Rua Voluntários da Pátria, em Botafogo. Foi nesse mesmo dia que passeamos pelo Flamengo e pelo centro da cidade, visitando a Praça Tiradentes e os Arcos da Lapa. Até então, meu centro era mesmo Campo Grande, Bangu ou Madureira, e esses passeios repletos de comércios com suas cores e barulhos, de cheiros e gostos, de gentes e esbarrões sempre me propiciaram grande diversão e encantamento.
Mudamo-nos para o sul do país pouco depois dessa incursão familiar, eu com onze anos de idade. O Rio ficou longe, mas nunca esquecido, nas histórias que meu pai vivia contando e reprisando. Assim, vinte anos depois, em 2011, decidi viajar pela primeira vez ao Rio sozinha. Fui como uma carioca-turista: para conhecer Pão-de-Açúcar, Cristo, Copacabana. Mas acabei conhecendo muito mais coisa, coisas que acabaram, reunidas, me trazendo até aqui. Sempre recordo a manhã em que fui visitar a Cinelândia: conforme subia do subterrâneo nas escadas rolantes do metrô, descortinou-se para mim a paisagem vistosa dos prédios históricos, que me pareceu uma das coisas mais bonitas que eu já vira. Logo em seguida, ao passar frente ao majestoso Teatro Municipal, um rapaz me interpelou para vender um fanzine de poesias. Muito simpático, vendia os folhetos por um real.
Guardo o fanzine até hoje. Ele me serve de lembrete de quando meu futuro interesse de pesquisas, incipiente, começava a desenhar veredas na minha cabeça. Foi o começo de eu pensar nessa questão toda de arte nas ruas – que pesquiso nos últimos anos – e, levada por meus afetos, de buscar ver a cidade pelo olhar das gentes que a fazem, todos os dias. Como esse moço que vendia fanzines, mas também como os poetas de slam, que acompanhei na pesquisa de mestrado, que denunciam questões sociais levando e trazendo poesias por toda a cidade. Ou como um senhorzinho, dono de um pequeno restaurante, que fui entrevistar em meu TCC de Jornalismo sobre bairros de uma cidade no interior de Minas Gerais, que me comoveu com sua história e me ofereceu um guaraná antes de eu ir embora.
No início do segundo ano do doutorado, porém, eu estava um pouco frustrada porque não tinha sorte em minhas saídas de campo. Achava que estava sempre no lugar errado na hora errada, já que não encontrava artistas onde colegas e professores me indicavam que eles estariam. Eu derivava pelas ruas, por pistas e indicações, mas acabava indo mesmo a apresentações agendadas, das quais eu ficava sabendo antes, pelas redes sociais. Os encontros ao acaso escasseavam nas ruas. Até que um domingo fui a Copacabana, passando no mesmo lugar que já havia percorrido várias vezes sem ter tido contato com nenhum artista. Mas, nesse dia, em uma esquina da rua Santa Clara com a Nossa Senhora de Copacabana, lá estava um guitarrista tocando blues.
Parei para tentar uma conversa. Depois de breves trocas de informações, sobre meu trabalho e o dele, o músico comentou que o primeiro local em que tocara na rua foi o calçadão de Campo Grande. Eu sorri, contando que quando nasci minha família morava nesse bairro. Então ele me perguntou em que parte e eu não sabia explicar, mas arrisquei dizendo o nome de nossa rua, crendo-me um pouco tola por achar que alguém conheceria justamente aquela rua, no bairro mais populoso do Rio de Janeiro. E não é que ele conhecia? Na hora olhou para o ar tentando puxar pela memória: “A rua Moranga é ali… em Inhoaíba[1]..!” – e nos surpreendemos juntos, de “nos encontrarmos” ali.
Assim, nesse meu retorno ao calçadão de Campo Grande caminhando pela Nossa Senhora de Copacabana, refleti que a busca pelos artistas (e pelas “cidades” desses artistas) tem sido minha forma, também, de re-conhecer a minha cidade, em mapas deambulantes e percursos que, no meio do caminho, buscam trechos que cruzam, algumas vezes, o comum – seja por uma lembrança incidental, seja numa letra de música ou poesia que se cantarola juntos.
[1] Campo Grande, bairro da zona oeste, foi sendo subdividido ao longo do tempo e hoje a rua Moranga pertence ao bairro de Inhoaíba.
Danielle da Gama é doutoranda em comunicação na UERJ, membra do grupo de pesquisa Comunicação Arte e Cultura, pesquisadora de artes de rua.