Fios Invisíveis

Um poema que pede uma dança e dessa relação torna-se cena. Um grito que ficou enrijecido num texto e que depois de alguns dias se descobriu música. Um gesto que foi parar  num pincel e alguém dançou o movimento da tela. A arte é a comunhão de linguagens, de tempos, da vida e por essa razão que me faltam sempre palavras para descrever o que faço. Claro que há também em todo trabalho artístico as questões práticas de produção, mas hoje a intenção é me debruçar sobre a artesania do processo de criação em si a partir da experiência com a Oficina Fabulação, Corpo e Cidade que realizamos pela Peneira no Centro de Arte da Funarte. Me contemplo a pensar que o artista antes de tudo é um ser atento, voltado para o que pulsa, e este estado de atenção se torna vetor para revelar o que não pode ser visto a olho nu, ou seja, sem a lente poética da arte. 

A Oficina Fabulação, Corpo e Cidade que realizei ao lado de Priscila Bittencourt e Laís Castro, parceiras de Peneira, simbolizou o meu retorno às atividades após o nascimento da Lia, minha filha. Não há nada mais pulsante e intenso do que a chegada de um filho e de uma mãe, um corpo chega ao mundo  e outro renasce, e foi deste jeito renascida que fui fabular com meus pares. A oficina foi estruturada para ser uma experiência imersiva de dez encontros em diálogo com duas regiões da cidade: Centro e Campo Grande. Tínhamos como proposta a construção de ações performativas a partir do método criativo “Fabulações do Território”, pesquisa essa que vem sendo desenvolvida pela Peneira e que se tornou ponto de partida para muitos projetos da instituição. Os participantes foram convidados a se debruçar sobre múltiplas linguagens tendo em vista a questão da territorialidade e a prática da deriva, que é o ato de caminhar pela cidade de forma mais ativa, atenta ao que te afeta. O Centro tem uma atenção própria, não dá pra vacilar, ao mesmo tempo é um estado bruto de poesia, passos apressados sobre a presença firme de um passado que está sempre passando e de um futuro que a rua anuncia.  Meu corpo novo tropeçou algumas vezes para se adequar ao ritmo da multidão, para relembrar ruas, evocar memórias e estados. Era como se o mundo me desse boas vindas novamente. 

No primeiro dia de oficina, me surpreendi com a diversidade dos  participantes, pessoas de diferentes lugares, idades e áreas de atuação, a multiplicidade enriqueceu o processo. Para iniciarmos a prática, criamos o hábito de contar nosso caminho de casa até a oficina e aos poucos, a cidade era tecida no espaço: Bangu, Realengo, Méier, Grajaú, Santa Teresa, Laranjeiras, Copacabana… e pela ótica das trajetórias conhecemos um ao outro. No dia seguinte, 23 de abril, derivamos na festa de São Jorge da igreja do Campo de Santana, a prática avermelhou o processo. Ritos, rezas, axés, desejos, camelôs e o calor das velas. Nunca tive uma religião, uma crença específica, mas sempre me emocionei com rituais, é um lugar onde o imaginado se torna possível, afinal a arte é filha do rito. Neste dia, conversei com São Jorge pela primeira vez, foi uma conversa um pouco tímida mas nos entendemos bem, falamos sobre essa linha inexistente entre vida e arte. Dentro do processo criativo existe sempre algo a ser mais procurado do que inventado, e a festa de São Jorge significou esse achado para o grupo. Uma experiência em comum que produziu texturas, imagens e memórias diversas. O Centro em dia de feriado é tomado por uma outra atmosfera, ruas vazias ecoam o passado, algumas cenas inesperadas como cadeiras na porta de casas como se fosse um recorte do subúrbio entre prédios espelhados. O cheiro de feijão impregnava o ar, nas proximidades da festa tudo era vermelho, fogo e desejo. 

No decorrer da primeira semana as dinâmicas e dispositivos usados foram a base para que pudéssemos levantar materiais, reflexões, propostas e assim construir de maneira coletiva um repertório do grupo. Além de contar a caminhada de casa até a oficina, compartilhamos nossas memórias através de fotos e objetos. As histórias se atravessaram e quando misturadas se transformaram: a fabulação começou a entrelaçar os fios. A prática me remeteu às histórias da oralidade, dessa capacidade de fazerem grandes viagens, histórias do nosso folclore que descobrimos em versões bastante semelhantes na Arábia e mais outra na Polônia. As vivências individuais se reconheciam no grupo mesmo que vindas de diferentes pontos da cidade e vi o Grajaú  caber em Realengo, Bangu em Copacabana, Arcos da Lapa em pleno Méier. Neste entrelaçar refletimos a caminhada – como você caminha na sua rua? – E quando a investigação exigiu a entrega do corpo, nos deparamos com um desafio: O grupo, de uma maneira geral, era mais mental do que físico, palavras não faltavam nas rodas de conversa, mas quando havia a exigência do corpo sentíamos que uma certa timidez pairava no ar. Entendemos a partir daí que era preciso propor dinâmicas que tirassem aqueles corpos do eixo. O diálogo com Campo Grande foi essencial para desenvolvermos essa questão. 

Fomos recebidos com muito entusiasmo por Laís no Citrus Ateliê em Vila Nova, Campo Grande. Desta vez o caminho da casa até a oficina se alongou e rendeu histórias compartilhadas já que o grupo se dividiu em dois carros para chegar até lá. Durante a deriva, nos sentimos mais observados, olhares alongados, olhar que deixa olhar. Éramos estrangeiros daquele cotidiano. Alguém disse: “No centro a gente é mais um.” Achei interessante que a partir da experimentação do lado oposto é que se deu a reflexão de algo posto, um descolamento. Neste dia, tivemos a ilustre presença do Guilherme, cria de Campo Grande e que no auge dos seus oito anos já carrega consigo muita sabedoria. Guilherme nos guiou durante a deriva. Experimentei caminhar sobre a ótica da criança, o andar que escolhe os caminhos que tenham mais degraus para  pular, que salta, corre e que não pisa na linha. No meio do caminho comemos fruta do pé e uma senhora se instigou com aquele grupo de pessoas em um estado maior de contemplação do que o costume. Ela olhou e deixou olhar, depois disse: “ Tão admirando a rua? Bonita, né? Aqui tem muito pé de árvore.” Minha imaginação instantaneamente criou uma árvore com várias arvorezinhas penduradas e em silêncio agradeci a ela por embaralhar meus pensamentos. A senhora entrou em casa e Guilherme correu para a praça, nós com ele. Ao chegar na praça de Vila Nova, novamente o translado das histórias vieram me perturbar, foi como se eu tivesse chegado a uma praça de Nova Friburgo, minha cidade natal. Um coreto, adolescentes dividindo um refrigerante depois da escola, um bar, um rádio tocando ao fundo e a paz aparente de uma guerra velada. De volta ao Citrus, Priscila com sua sensibilidade em dia, pediu para que Guilherme ensinasse ao grupo a forma com que caminhava: sabe aquele saltitar das crianças? É como se fosse um entre correr e andar, mas entre uma passada e outra existe um planar sob o ar. Terminamos o dia com os ensinamentos de Guilherme sobre como encontrar o voo entre um passo e outro. 

A elaboração da apresentação final foi como montar um quebra cabeça de repertórios levantados durante o processo, mas quero dar ênfase ao modo que escolhemos começar a performance: Da massa invisível do ar, foi esculpido um dragão, com peso específico, direções e pequenos voos. O dragão – emprestado por São Jorge – foi o resultado deste empenho de repensar as estruturas corporais do grupo, pois para fazer com que existisse foi preciso aderir um pouco do corpo do outro, descobrir esse andar coletivo, entender quais forças eram necessárias ativar para a presença do peso dele no espaço. Começamos a nossa apresentação segurando o bichano com o corpo empenhado para não deixá-lo escapar. Às vezes ele escapava e lá íamos nós atrás dele! Me emocionei ao me dar conta que seguramos ali bem mais do que um dragão, e sim toda a complexidade dos desejos e da entrega de quem aceitou entrar nessa empreitada conosco. É preciso muita generosidade para não somente ver o invisível, mas ter a coragem necessária para ser veículo e mostrá-lo com a devida honestidade ao público presente. 

Elisa Ottoni é escritora, contadora de histórias e atriz formada pela Unirio. Atualmente integra a equipe de direção da Peneira. Cena e literatura caminham juntas em seu trabalho como artista.

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