A Rua Joaquim Silva e a experiência fabulatória do espetáculo Sorte ou Revés
Por Priscila Bittencourt
É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro. (Carvalho, 1987: p.10)
Rua Nova de Santa Teresa (1885), Doutor Joaquim Silva (1917) e enfim, Rua Joaquim Silva (1). Estes foram os nomes da rua cujo perímetro hoje vai da esquina com a Rua Evaristo da Veiga, em frente aos arcos da Lapa, até a Rua Augusto Severo, local que antes dos aterramentos era conhecido como praia da Lapa (2), localizada na região central da cidade do Rio de Janeiro. As alterações do nome da rua aqui vão de encontro ao que, Lefebvre (2008, p.81), aponta como as metamorfoses da cidade, “essa obra por excelência da práxis e da civilização se desfaz e se refaz sob nossos olhos”. O nome que antes indicava a rua como parte do bairro de Santa Teresa hoje leva o nome do médico e filósofo compondo o bairro da Lapa, território de forte expressão no imaginário sobre o Rio de Janeiro e local que o método de trabalho Fabulações do Território foi inaugurado em outubro de 2018, cuja estreia de seu resultado final, o espetáculo multilinguagem Sorte ou Revés, completa um ano neste fevereiro de 2020.
Conhecida internacionalmente pelo colorido dos ladrilhos da Escadaria Selarón, a rua é também popular pelo circuito da boemia. No início dos anos 2000, aglomeravam-se jovens de diferentes regiões da metrópole do Rio de Janeiro, assim como turistas das mais diversas origens, que ali encontravam espaços de lazer e entretenimento (3), concentrados no trecho entre a Rua Evaristo da Veiga e Rua Teotônio Regadas, justamente a fração mais conhecida da Joaquim Silva.
Em busca de levantar dados, conhecer outras narrativas e estreitar laços com o território, criar registros e potencializar novas narrativas e em consequência gerar documentos (4), de acordo com LE GOFF, J (1990, p.288), a Peneira colocou em prática o método de trabalho Fabulações do Território. O método conecta diferentes linguagens artísticas com o fazer etnográfico, o Cinema Verdade AUMONT; MARIE (2007, p.50), Teatro do Oprimido BOAL (2008, p.19), Teatro de Vizinhos CRUZ (Coord.) (2015, p.92) e Teatro Documentário PAVIS (2008, p.387), onde moradores e artistas ficcionam a partir das memórias e do cotidiano de determinada comunidade.
O Fabulações do Território, faz parte do escopo de ações da Associação Cultural Peneira (5) na metrópole do Rio de Janeiro, assim como o Sarau do Escritório, espetáculo composto por diferentes expressões artísticas com ênfase na literatura e poesia falada e o Cine Vila, cineclube com projeção de filmes nacionais e estímulo para experimentação nas artes visuais, articulado com debates. Para realizar o projeto, o pequeno trio que então compunha a Peneira, Alex Teixeira, Luiz Fernando Pinto e eu, realizamos o convite para a produtora Talita Magar que com afinco e dedicação juntou- se a nós para tornar possível o nosso melindroso plano. Como equipe convidada, contamos também com Yassu Noguchi (poeta e escritora) , Kamilla Neves (atriz e dançarina) , Domitila Almenteiro (arquiteta), Flávia Moretz (Vj) , Michele Lima Pereira (atriz), Ledjane Motta (cantora e preparadora vocal), Camila Loren (estilista e figurinista), Paulo Sérgio Kajal (poeta), Pedro Uchoa (ator), Victor Santana (ator), Handerson Oliveira (VJ), Jon Tomaz (iluminador), Jon Pires (músico), Victor Coutinho (fotógrafo), Fabiano Pires (arquiteto e designer), Mauricio Maia (músico), Fernando Katulo (músico), Sérgio Farias (câmera). Na supervisão além mar, tivemos o Hugo Cruz (diretor artístico do grupo PELE, da cidade do Porto, Portugal) que com seu olhar atencioso e experiência, foi fundamental para o Fabulações do Território extrapolar os nossos desejos, tornando tangível nosso plano de criação artística e comunitária.
O espetáculo itinerante Sorte ou Revés foi resultado do processo de trabalho do Fabulações do Território e de uma confluência de linguagens artísticas como cinema, performance, música e poesia atravessados pela cidade. O espetáculo perpassou toda a extensão da Joaquim Silva com dezoito pessoas em cena, incluindo atores, não atores e músicos. Um processo de fabulação através da oralidade, compartilhamento de memórias e criação artística, potencializando a ressignificação de um espaço urbano expandindo a ideia de cidade e possibilitando a construção de outras narrativas. Neste projeto fui uma das pessoas que formulou o método de trabalho, dirigiu o espetáculo e também escreveu a dramaturgia.
A inserção no campo iniciou em setembro de 2018, estabelecendo um primeiro contato com moradores e comerciantes da rua, explicitando do que se tratava o projeto e já ouvindo histórias sobre a região. Logo fomos apresentados, por um grande parceiro da Peneira, o Lencinho (do Circo Voador), à Dona Marlene, moradora a mais de cinquenta anos da Rua Joaquim Silva e figura de suma importância para as dinâmicas sociais e afetivas daquele território. Conhecemos também o Seu Francisco (da sapataria) que outrora realizou a manutenção dos sapatos de Madame Satã, ele compartilhou conosco recortes de jornais antigos, assim como as memórias daquela região. Fomos recebidos também pela Gilmara e Adalto (proprietário do bar de mesmo nome), assim como pela Robertinha Villas, Tuninho Villas e Marvin Maciel (da Casa Com a Música), os donos da rede de restaurantes Os Ximenes, Seu Antônio (do bar da esquina da Travessa da Mosqueira), Daad (do hotel ali no início da Escadaria Selarón), Adelino (do Othello Centro Cultural), Fátima e Will (da marcenaria), Paulo Branquinho, além daquelas figuras que ao longo dos meses passaram a nos cumprimentar e perguntar sobre o processo “do teatro”.
Foram espalhadas faixas e cartazes pela extensão da rua convidando moradores, comerciantes e simpatizantes a participar da construção de um espetáculo a partir das memórias da rua. No dia 01 de novembro, na Casa de Estudos Urbanos, deu-se início aos encontros, com duração de três meses resultando no espetáculo multilinguagem que moveu público e artistas pela extensão da Joaquim Silva, aos sábados e domingos de fevereiro de 2019. No nosso primeiro encontro, cheios de dúvidas, tímidos e sobretudo curiosos, conhecemos aqueles que viriam a ser os protagonistas do nosso ambicioso plano de alcançar mentes e corações por meio de um emaranhado de memórias prévias e aquelas construídas coletivamente ao longo do processo. Os moradores, comerciantes e simpatizantes foram chegando. Entre eles estavam, Júlia Cabo, Luís Cláudio Arcos (o LC), Marcus Ferreira, Tiago Nascimento (o Articulador), Calebi Benedito, Luan Estevez e Wellington, entre outros, mostrando-se abertos e disponíveis à entrega de um processo intenso de construção, surpreendendo as expectativas daqueles que meses antes planejaram aquele encontro. Era evidente que alguns mais disponíveis que outros, como o exemplo do Marcus Ferreira, que chegou pronto para assistir um espetáculo e não esperava participar de um, precisando ser convencido a permanecer. Vale ressaltar aqui, que o processo de conquista e convencimento é contínuo e mútuo, até o último dia de espetáculo. Posteriormente, foram chegando Amanda Corrêa, Cristina Telles e Waleska Adami (a Dilminha).
Durante os encontros os participantes foram convidados a realizar trabalho de campo no logradouro e estimulados a desnaturalizar os sons, a arquitetura, os personagens locais e as diferentes intervenções no espaço urbano, levando-os a perceber as diversas camadas de temporalidades e construções sociais em um mesmo espaço tempo, em um movimento de estranhar o familiar assim como Gilberto Velho coloca em o Desafio da Proximidade (2003, p.15). Cada participante do processo recebeu um bloco de notas onde escreviam o seu “diário de bordo”, em ocasiões específicas realizaram entrevistas com moradores e transeuntes, além da observação participante. Circular e frequentar espaços da Joaquim Silva passou a ser parte da rotina do grupo durante os meses de preparação do espetáculo, estar na Joaquim Silva passava por momentos de trabalho assim como de lazer. Os participantes passaram também por preparação corporal, vocal, musical e encontros com análise de fotografias e vídeos sobre região, sendo estimulados a produzirem também seus próprios conteúdos. Os textos, vídeos e fotografias produzidos pelo grupo foram analisados e debatidos durante os encontros.
A partir do acúmulo de uma multiplicidade de documentos, relatos e relações estabelecidas durante o processo de criação do espetáculo, hoje volto a esta experiência sob o desafio de compartilhar reflexões sobre a mesma, diante da necessidade de dar continuidade ao que foi construído, elucidar os possíveis saberes gerados pelo trabalho e elaborar questões a serem debatidas. A busca por converter relatos e registros da experiência artística no espaço público em narrativa a ser compartilhada, é fruto do anseio de investigar e propor soluções para as barreiras simbólicas presentes na construção do espaço urbano e das relações entre indivíduos na metrópole. A proposta aqui é considerar a possibilidade de construção do espaço urbano que sejam mais horizontais, onde os indivíduos que agenciam (GIDDENS, 2003, P.17) a urbes cotidianamente possam se perceber no imaginário de cidade. Esse percurso envolve as formas de representação e processos comunicacionais, desde os monumentos, matérias de jornais e até mesmo o nome da rua.
Ao considerar a profusão de conteúdo gerado, a expressiva quantidade de pessoas envolvidas e a representatividade deste território para a metrópole, torna-se significativo aprofundar a análise a fim de gerar conhecimento, capaz de estabelecer elos entre o que está sendo discutido e pesquisado por mim e pela Peneira, e a práxis cotidiana da cidade.
A transformação da percepção deste território, concomitante às transformações de percepção estéticas e cognitivas do grupo de pessoas que participou do processo e do espetáculo é um ponto chave para esta reflexão neste um ano depois.
A rua que antes era conhecida, pela maioria do grupo, pelas memórias de boemia, hoje é um vasto campo de referências e camadas que dizem muito sobre a cidade em que vivemos. Ao analisarmos coletivamente as fotos antigas vimos que o famoso Arcos da Lapa, já foi espaço de comércio e moradia. A disputa pelo espaço urbano, foi revelada nas pequenas casas de madeira que foram sendo apagadas das fotografias aéreas ao longos dos anos. O mesmo caminhar com o peso nas costas foi observado durante as idas à rua, como na fotografia do extinto quiosque, anterior às reformas de Pereira Passos, localizado na esquina com a Rua Evaristo da Veiga. Os arquétipos do cotidiano revelam um território, sobretudo, popular.
Sob o mesmo espaço, os arcos da lapa, que um dia foi moradia, em outro tempo, local de eventos culturais, e que hoje ainda temos exemplares da obra de Selarón, percebemos as transformações da cidade e como as intervenções no espaço público não estão fixas. A transformação é permanente e a memória da cidade também é feita pelos indivíduos que a constroem cotidianamente. As obras artísticas que hoje são afixadas no epicentro do simbólico território, precisam de permanente manutenção física mas também de sentido para aqueles que as mantém vivas.
Nossa referência fundamental, homenageada no espetáculo e que também veio a se tornar uma grande parceira, a Dona Marlene, é a personificação de como um território é construído cotidianamente pela articulação de pessoas. Sua forte influência e poder de representação dos desafios e afetos da rua, revelam o que não está escrito na placa com nome da rua, dos documentos oficiais e nem nos jornais e revistas sobre o ponto turístico. A liderança, presença e afeto desta mulher, alcançam camadas que só é possível a partir da relação entre pessoas. Através de suas ações, hoje temos memórias de uma rua que também é espaço para crianças brincando de pique pega, pula pula, de bingo com brinde de fraldas paras as recentes mães, a tão sonhada geladeira e até mesmo a cerveja do fim de semana. Por meio desse ato de nos receber, vi num mesmo espaço a brincadeira informal e ajuda entre vizinhos, enquanto a vigilância do Estado passava de camburão abrindo caminho entre as bolhas de sabão das crianças.
Acredito que cada participante do Fabulações do Território, a partir do encontro e compartilhamento de experiências, tornou-se um vasto campo de referências e de transmissão de conhecimentos, não só sobre a rua, mas sobretudo, de como construir coletivamente, de pensar a cidade, para além do que é visível aos olhos, e do potencial de influência e atuação que cada um carrega.
Percorremos um caminho sobre os afetos e imaginários, compartilhamos o absurdo e fabuloso na tentativa de alcançar mentes e corações. Aqui a necessidade síntese, adia relatos e causos, dessa aventura que foi montar um espetáculo que percorria a extensa Rua Joaquim Silva.
Este foi um pontapé inicial para espalhar pelos diferentes territórios possibilidades de fabulação coletiva. Fica aqui o profundo agradecimento a todas e todos que deixaram um pouco de si e levaram um pouco do todo, superando os diversos desafios da nossa epopeia, tornando-a possível.
Foto quiosque: autor desconhecido
Fotos do processo e espetáculo: Victor Coutinho
Notas:
(1) Fonte: http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/2003/01/nomes-antigos-de-ruas-do-rio-de-janeiro.html
(2) É possível achar referências a Praia da Lapa em fotos antigas como a fotografia de Juan Gutierrez de 1894 disponível do acervo do Instituto Moreira Salles.
(3) É possível encontrar relato semelhante em Fazzioni, Natália. 2012 Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2012.
(4) Segundo Le Goff, J (1990, p.288): O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.
(5) A Associação Cultural Peneira organização multicultural criada no Rio de Janeiro em 2010, que busca possibilidades estéticas em suas variadas ações no campo da indústria criativa. Reconhecida pelo MinC como Ponto de Cultura, recebeu, através da Comissão de Cultura da Alerj, o diploma Heloneida Studart 2019 de reconhecimento pelas práticas culturais realizadas no estado do Rio de Janeiro. Atua através da combinação de linguagens, propondo processos artísticos e estratégias de viabilização, mobilização e metodologias propulsoras para transformações culturais e sociais. www.peneira.org
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